Folha de S. Paulo


Crítica: Só é preciso ser criança para apreciar peripécias de Tarzan no livro

Do alto de sua casa na árvore, Tarzan está completando cem anos de estreia em livro. "Tarzan dos Macacos", de 1914, o primeiro de uma longa série, acaba de ser relançado no Brasil, em nova tradução e com o título reduzido a "Tarzan". É um dos grandes prazeres da literatura e, tenha você 12 ou 32 anos, só precisa de uma coisa para apreciá-lo: ser criança.

Edgar Rice Burroughs, pai do personagem, nunca foi à África. Tudo bem. Julio Verne também nunca foi ao centro da Terra, Ray Bradbury nunca foi a Marte e Kurt Vonnegut Jr. nunca foi a Titã, que, por sinal, não existia. A África de Burroughs também não existia —até ele a ter criado. Na verdade, era apenas um cenário para seu personagem, este, sim, a decantação de uma série de mitos, lendas e outras criações literárias que Burroughs conhecia muito bem.

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Ilustração de Hal Foster, de 1920, presente em 'Tarzan
Ilustração de Hal Foster, de 1920, presente em 'Tarzan'

Tarzan, o menino branco nascido na selva, órfão em bebê e criado pelos macacos, é um eco remoto de Rômulo e Remo, fundadores de Roma, que deveram a vida a uma loba. E, mais próximo, de Mowgli, o jovem herói de Rudyard Kipling, que teve todos os animais como seus mestres. Ao encontrar os livros deixados por seus pais numa choupana, Tarzan, sozinho, aprendeu a ler e descobriu seu status no mundo —exatamente como a Criatura do Dr. Frankenstein no romance de Mary Shelley.

O misto de homem e besta que compõe a base de seu personagem já estava nos trágicos Jekyll & Hyde, de Robert Louis Stevenson; antes ainda, na fábula da Bela e a Fera; e, claro, na "Origem das Espécies", de Darwin, e no "bom selvagem" de Rousseau. Quanto à África, Burroughs aprendeu tudo sobre ela nos relatos jornalísticos do século 19 —o mais famoso, o de Henry Stanley, do "New York Herald", à cata do Dr. Livingstone na hoje Tanzânia— e nos insuperáveis romances de H. Rider Haggard, "Ela", "A Volta de Ela" e "As Minas do Rei Salomão". Todos anteriores a Tarzan.

Mas que essa extensa genealogia não diminua a façanha de Burroughs. Seu personagem é um herói adulto, sensível, apto a peripécias e muito mais rico em livro do que nos filmes a seu respeito. Não é primitivo como o Tarzan de Elmo Lincoln, burro como o de Johnny Weissmuller e, muito menos, blasé como o de Lex Barker (e não Baxter, como no prefácio a esta edição). É um Tarzan em conflito e que tem de escolher entre reassumir sua persona de lorde Greystoke em Londres ou seu trono entre os macacos. Um doce bárbaro. E, como toda grande criação, é maravilhosamente inverossímil.

Sou íntimo desse Tarzan há 60 anos. Li-o pela primeira vez aos seis anos, em 1954, na edição da Coleção Terramarear. Foi o primeiro livro que comprei. E devo ter gostado, porque a ele se seguiram outros 19 livros da série. Livros estes que foram se perdendo pela vida, mas que, nos últimos 20 anos, dediquei-me a encontrar nos sebos, um a um, as mesmas edições, com seus irresistíveis títulos —"Tarzan Triunfante", "Tarzan, o Rei da Jangal", "Tarzan e os Homens-Formigas"—, as capas gloriosas, o papel amarelado e, até hoje, um cheiro familiar, de descoberta da vida.

TARZAN
AUTOR Edgar Rice Burroughs
TRADUÇÃO Thiago Lins
EDITORA Zahar
QUANTO R$ 54,90 (336 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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