Folha de S. Paulo


Artista visual Lenora de Barros encara seus duplos em exposição em SP

Na língua de Lenora de Barros, nenhuma palavra é inocente, chapada ou única. Todas elas se desdobram, viram do avesso e mostram suas vísceras num balé tátil.

Ela já escreveu, esbanjando aliterações, sobre o "macio da palha de aço amassada" e a "liquidez impalpável da água dentro do plástico".

Essa multiplicidade dos vocábulos aparecia toda semana na mais enigmática das colunas do extinto "Jornal da Tarde". Entre 1993 e 1996, a artista tinha um espaço livre para digressões imagéticas, com breves textos que sublinhavam colagens, fotografias e registros de performances.

Raquel Cunha/Folhapress
Lenora de Barros diante de seu vídeo exibido no Pivô, em SP
Lenora de Barros diante de seu vídeo exibido no Pivô, em SP

"Era um lugar de plena liberdade, não era vinculado às notícias", diz Barros. "Naquela época, não existia Google, então eu desenhava toda a coluna usando a memória e as minhas associações."

Quase duas décadas depois, ela cria novas associações entre esses textos numa exposição que começa hoje no Pivô, centro cultural que ocupa um andar vazio do edifício Copan, em São Paulo.

Emolduradas nas paredes, suas colunas recortadas do jornal ganham ar de obra plástica. E faz todo o sentido, já que foram embrião de muitas das performances e vídeos mais célebres da artista.

Estão lá seus autorretratos com perucas nada sutis, da cabeleira "black power" à loira escorrida, que deram origem a seus lambe-lambes da série "Procuro-me". Também o poema que serviu de roteiro ao vídeo "Não Quero Nem Ver", em que desfia um gorro de lã que cobre seu rosto.

"Essa coluna era meu ateliê. Daqui nasceram vários trabalhos", conta Barros. "Ninguém entendia como um jornal cedia espaço para esse tipo de experimentação, mas isso foi fundamental na minha trajetória. Foi um exercício de disciplina mesmo."

Isso porque, antes da era digital, Barros fazia tudo à mão. Mandava um esqueleto da coluna por fax ao jornal e buscava em seus arquivos e em outros livros e revistas as imagens que precisava para ilustrar todas aquelas ideias.

PERDER E GANHAR

Quando não encontrava, o jeito era ela mesma fabricar as imagens, como o dia em que costurou um traje que amarrava todo o corpo, deixando só o rosto para fora, e posou para um fotógrafo como uma boneca enfaixada.

Numa das colunas, essa imagem que lembra um joão-bobo aparece espelhando um retrato da artista francesa Marie-Ange Guilleminot usando uma roupa quase igual. Ela fazia ali as vezes de duplo, conceito que atravessa a obra de Barros e deu origem a dois novos vídeos agora no Pivô.

De sua relação com outras artistas mulheres, como Yoko Ono e Cindy Sherman, Barros inventou seu "Jogo de Damas", uma seleção das colunas que falam de outras autoras e vídeos em que aparece jogando uma partida de damas contra si mesma, trocando de lado a cada jogada.

Em cena, Barros é também seu próprio duplo. "É por essa questão de duplicidade o jogo de damas", diz a artista. "Foi uma sensação estranha. Eu sentia prazer de ganhar, mas sabia que estava perdendo o jogo ao mesmo tempo."

Nesse ponto, ela parece levar às últimas consequências a ideia de analogia do poeta francês Paul Valéry. Segundo ele, isso seria a "faculdade de variar e combinar as imagens, fazendo coexistir partes de uma e de outra para ver a ligação entre suas estruturas".

"Isso virou um mote na minha vida", diz Barros. "Meu trabalho foi sempre uma reflexão sobre o ato de ver e a ideia de criar uma imagem tátil. É quase um jogo infinito."

E por mais preto no branco que seja o jogo de damas, um contraste adensado aqui pelo claro-escuro do filme também em preto e branco, Barros revela as idas e vindas da cabeça de um artista —da sensação traiçoeira de vitória às derrotas mais gloriosas.

LENORA DE BARROS
QUANDO abre hoje, às 15h; de ter. a sex., das 13h às 20h; sáb., das 13h às 19h; até 17/5
ONDE Pivô, edifício Copan, av. Ipiranga, 200, tel. (11) 3255-8703
QUANTO grátis


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