Folha de S. Paulo


Crítica: Desejo e frieza dialogam em 'Ninfomaníaca - Volume 2'

Agora já é possível ver as coisas com mais nitidez: a primeira parte de "Ninfomaníaca" era antes de tudo uma introdução às questões que o "Volume 2" desenvolve.

Recapitulando: no "1", tratava-se de promover o encontro de Joe (Charlotte Gainsbourg) com o homem que a acolhe, Seligman (Stellan Skarsgard). Ambos iniciam uma espécie de diálogo filosófico que ajuda a introduzir Joe, seu pai, suas relações com a natureza e o sexo, servindo-se de metáforas propostas por Seligman.

O "Volume 2", além de estabelecer com mais clareza o papel dos dois (o conhecimento pelo corpo, de um lado, e pelos livros, de outro), os tornará idênticos em ao menos um sentido: o afastamento da sociedade e de suas leis. Seligman retira-se como uma espécie de religioso, o que é menos interessante. Joe entrega-se plenamente à busca de saber que árvore ela é (no "Volume 1", em seus passeios no bosque, com o pai, ela aprendeu que a cada árvore corresponde uma alma).

Desta vez, a primeira lição séria quem dá é Joe, ao criticar o "politicamente correto": quando existe algo delicado a atormentar a sociedade, suprime-se a palavra, em vez de tratar o problema. Eis a essência da sociedade humana, a seu ver: a hipocrisia.

Do outro lado está o desejo. Incontrolável e incontornável, no seu caso. Desejo que em princípio aproxima os seres. No caso de Joe, porém, afasta-os em definitivo.

Ela descobre-se antissocial. A ninfomania a impossibilita de exercer quase todas as atividades, mas, antes de tudo, a desvincula do sentimento. A experiência do sentimento, para ela, equivale a uma espécie de correção política da sexualidade: o amor por um homem, a maternidade e mesmo a amizade só a desviam de sua busca.

Já a sexualidade a afasta do mundo não apenas como destino a sofrer, mas como destino reflexivo: é ela que revela, em sua radicalidade, a fragilidade de nossas leis sociais. Ou antes: revela todo o sacrifício que essas leis impõem aos homens para que possam viver em comum. Joe, à maneira de um Sade, recusa esses sacrifícios. Outros lhe serão impostos.

Von Trier preserva a mesma escrita: os tiques de câmera, o distanciamento, o tom pessimista. A aspereza com que trata o destino dos homens remete no entanto à moral rígida da escola nórdica.

Não será por acaso, com certeza, que Joe, que revira e tortura o próprio corpo em busca de saber quem é, encontra-se com Seligman, o assexuado, aquele para quem o conhecimento não pode provir do corpo nem da experiência: ele não tem nada a dizer, tudo que pode é traduzir a experiência de Joe em palavras, isto é, em distância.

Nas alternativas desse diálogo encontra-se muito da beleza de "Ninfomaníaca" (1 e 2), um dos grandes momentos de seu autor.

NINFOMANÍACA - VOLUME 2
(Nymphomaniac: Vol. II)
DIREÇÃO Lars von Trier
PRODUÇÃO Dinamarca/Bélgica/França/Alemanha/Reino Unido, 2013
ONDE Reserva Cultural e circuito
CLASSIFICAÇÃO 18 anos
AVALIAÇÃO ótimo


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