Folha de S. Paulo


Cineasta deixou uma espécie de testamento em seu penúltimo filme

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Bastou um filme para Alain Resnais deixar sua marca de cineasta inovador, num tempo em que o cinema não cessava de ampliar seus limites.

Mas "Hiroshima Meu Amor", sua estreia na ficção, promovia o encontro, em Hiroshima, de uma atriz francesa e com um homem japonês. Nenhum deles, amantes de uma noite, tinha um nome, nem sua história respeitava a tradicional cronologia linear.

Com a ajuda de Marguerite Duras no roteiro, Resnais excluía a psicologia romanesca tradicional (a explicação dos atos pelo passado dos personagens) e usava-os, o homem e a mulher, para abordar indiretamente duas catástrofes: a das bombas atômicas no Japão e a séria ameaça de um conflito nuclear.

Estávamos em 1959, uma época cheia de surpresas no cinema mundial, sobretudo europeu: duas ou três vezes por ano, pelo menos, a nouvelle vague francesa ou o cinema italiano traziam algo inédito.

Sem falar da Polônia de Wajda ou dos novos cinemas em gestação. Ainda assim, Alain Resnais se sobressaía a ponto de, quando fez seu segundo longa, "O Ano Passado em Marienbad" (1961), o crítico José Lino Grunewald, entusiasta das experimentações radicais, colocá-lo acima mesmo de Godard.

Não era sem motivo: "Marienbad", que trazia outro nome do "nouveau Roman" à esfera do cinema, Alain Robbe-Grillet, era um quebra-cabeça quase inabordável para espectadores que cresceram vendo, no cinema, histórias com começo, meio e fim –nessa ordem.

Ali, num luxuoso hotel da estância de Marienbad um homem tenta convencer uma bela mulher de que se encontraram um ano antes, naquele mesmo lugar. Ou seria outro lugar? Ela não lembra de nada! Ou diz que não lembra.

E aos poucos somos puxados para o interior de um labirinto onde nos perdemos, sem saber em que tempo e por vezes em que lugar estamos –nós e a ação.
O filme espantou também seus amigos. Resnais era um homem de esquerda (ao contrário da maior parte dos cineastas da nouvelle vague), agora produzindo um filme decididamente burguês.

O crítico Jean Douchet diria, muito depois, que "Marienbad" nasceu da simples impossibilidade de realizar um projeto sobre a Guerra da Argélia (assunto tabu na França da época).

Inovador, revolucionário, desconcertante: as palavras que definem o primeiro Resnais empalidecem nos anos seguintes: ninguém produz uma revolução no entendimento a cada filme.

Impossível, no entanto, negar o interesse da maior parte de seus filmes: "A Guerra Acabou" (1966), "Providence" (1977), "Meu Tio da América" (1980), entre outros.

A partir dos anos 1980, no entanto, o público o acompanha menos. O público havia mudado. Se vinte anos antes, quando não entendia um filme, o espectador sentia que talvez fosse por uma deficiência sua, o novo público parecia mais acomodado: se algo não lhe parecia claro a culpa era do filme, do diretor...

Talvez por isso, depois do intrigante "Smoking/No Smoking", verifica-se novo interesse de Resnais junto a um público mais amplo, graças a filmes mais simples, ao menos em aparência, como "Amores Parisienses" (1997), "Medos Privados em Lugares Públicos" (2006), "Ervas Daninhas" (2009).

Seu testamento, no entanto, talvez esteja no seu penúltimo filme, "Vocês Ainda Não Viram Nada!" (2012), em que um autor teatral convida seus atores favoritos para assistirem ao seu funeral. Ali, exibe-se um filme com suas últimas palavras. No entanto, ele ainda surgirá em pessoa, antes de desaparecer, em definitivo, dentro de seu filme.

Momento memorável, do cinema de Resnais, onde reencontra a mesma radicalidade de seus primeiros filmes e joga real e imaginário, vivido e fictício, escrito e representado num único espaço, aproxima tempos, une o vivo e o morto.

O filme termina num cemitério: talvez Resnais já pensasse obsessivamente na própria morte. Ainda assim, teve tempo para filmar "Aimer, Boire, Chanter". Ou, Amar, Beber, Cantar. E só depois morrer.

Editoria de Arte/Folhapress

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