Folha de S. Paulo


Freud se nutriu de Shakespeare, diz autor de estudo sobre o psicanalista

Um dos maiores escritores de língua alemã, Thomas Mann (1875-1955) sentia-se "inquietado e apequenado" pelo pensamento de Freud.

"O artista é varado pelas ideias dele como se por um feixe de raios X, isso chegando à violação do segredo do ato criador", disse o autor de "Morte em Veneza", em 1926, após admitir ter feito a novela "sob influência direta" de Sigmund Freud (1856-1939).

Narrada no recém-lançado "Freud com os Escritores" (ed. Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha), a passagem ilustra um dos lados da íntima relação histórica entre psicanálise e literatura.

O outro ocupa a maior parte do livro de J.-B. Pontalis (1924-2013) e Edmundo Gómez Mango, 73, e trata de como Shakespeare, Goethe, Dostoiévski e outros, além de amigos como Mann e Stefan Zweig, ajudaram Freud a transmitir seu pensamento.

Mango, professor de literatura, psiquiatra e psicanalista uruguaio em Paris, falou à Folha por e-mail.

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Folha - Freud usava textos literários para traduzir ideias. Pode-se dizer que, mais que isso, ele não teria tido tais ideias sem esses textos?

Edmundo Gómez Mango - Esse é um aspecto delicado. As nuances são várias. Freud confessa, por exemplo, temer encontrar na leitura de Nietzsche ideias que investigava. Encontra muitos de seus conceitos na ficção. Chamava os escritores de "os avançados", os que exploraram antes aspectos importantes do conflito psíquico.

Mas partia de experiências pessoais: a escuta de pacientes e a autoanálise. O essencial vem dessas fontes.

Mas o trabalho do romantismo alemão na representação do sonho preparou o terreno para Freud. Ao mesmo tempo em que conserva algo do valor onírico do poeta romântico, rompe com ele na elaboração teórica de compreensão do sonho, indissociável da do sujeito dividido entre o eu consciente e suas forças inconscientes.

Como vê estudos que relacionam psicanálise e literatura?
A psicanálise permitiu novas abordagens críticas da literatura. Pontalis e eu não somos partidários da "psicanálise aplicada" à obra literária, enfoque redutor e formalista. A vida psíquica singular não é um "texto" que se possa ler e interpretar só a partir de significantes linguísticos.

É, porém, evidente que grandes críticos puderam compreender melhor o sentido e até a estrutura de algumas obras da literatura tendo em conta as contribuições fundamentais da psicanálise.

Editoria de Arte/Folhapress

Os ensaios do livro tratam em grande medida da relação de Freud com o pensamento dos autores citados. Há também aproximação em relação ao estilo narrativo?
Quase no início de sua obra, Freud reconhece que, para descrever o que se dá na vida psíquica dos pacientes, para transmitir a clínica da neurose que está descobrindo, deve fazê-lo como os escritores, e não como os psiquiatras ou neurologistas da época. "Me assombra", diz, "que minhas histórias clínicas sejam lidas como romances".

Quando tenta se aproximar dos processos psicológicos que descobre no fundo dos sintomas neuróticos, aproxima-se quase involuntariamente dos escritores. Admira como seus contemporâneos, Stefan Zweig, Arthur Schnitzler (a quem via como um "duplo" de si mesmo), Thomas Mann, são capazes, aparentemente sem esforço, de transmitir as tendências mais poderosas e obscuras do psiquismo humano.

Também quando Freud narra seus próprios sonhos, é capaz de ceder sua pena de investigador ao "escritor poeta" que abrigava dentro de si.

Essa dualidade, escritor científico e literário, mantém viva até hoje a obra que revolucionou a concepção do homem moderno.

Dos autores citados no livro, quais tiveram maior influência sobre a obra de Freud?
J.-B. Pontalis aponta, com razão, que, para além das várias referências à obra de Shakespeare, Freud parece ter se "nutrido" dele, como se o tivesse "incorporado". Assim que define como "complexo de Édipo", além da referência à tragédia de Sófocles, convoca Hamlet como figura que mais bem o representa na literatura, exemplo do "neurótico universalmente célebre".

Sobre Goethe, Freud confessa ter se voltado à medicina após escutar o poema "A Natureza", então atribuído a ele. É talvez o poeta mais presente na obra de Freud, que chegou a enumerar os aspectos do escritor que mais influenciaram seu pensamento, como a compreensão da influência de impressões infantis e a concepção de amor. Freud considera Mefistófeles, personagem do "Fausto" goethiano, a encarnação de uma de suas ideias mais discutidas, a "pulsão da morte".

Em Schiller, encontrou a antecipação de sua ideia do primeiro dualismo pulsional, entre as pulsões que se dirigem ao objeto, como "a fome e o amor", e as narcisistas, ligadas ao "eu".


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