Folha de S. Paulo


Filme sobre adaptação de 'Mary Poppins' narra vida difícil da autora

Há quase 50 anos, os cinéfilos cultuam "Mary Poppins" (1964) como um clássico de fantasia da Disney, sobre uma babá inglesa mágica, um limpador de chaminés sorridente e a desajustada família de um banqueiro londrino.

Mas "Walt nos Bastidores de Mary Poppins", filme da Disney que tem estreia no Brasil prevista para dia 7 de março, conta duas histórias menos alegres.

Em flashback, o filme de John Lee Hancock ("Um Sonho Possível") narra o triste passado de P. L. Travers, a autora de "Mary Poppins", quando menina na Austrália, em um lar com um pai alcoólatra e uma mãe suicida.

François Duhamel/Divulgação
Ruth Wilson e Colin Farrell interpretam os pais da escritora de 'Mary Poppins'
Ruth Wilson e Colin Farrell interpretam os pais da escritora de 'Mary Poppins'

A segunda história gira em torno das duas semanas em 1961 nas quais Walt Disney (Tom Hanks), após batalhar por quase 20 anos pelos direitos de adaptação do livro junto a Travers (Emma Thompson), enfim a convence a visitar a Califórnia, onde os irmãos Sherman, compositores do estúdio, enfrentam problemas para colaborar com ela.

A crítica elogiou o desempenho de Hanks como o sorridente empresário internacional nada acostumado a ouvir não como resposta e o de Thompson, que confere a Travers doses equilibradas de exasperação, determinação e vulnerabilidade.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida por Tom Hanks e Emma Thompson.

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Emma, as suas experiências na adaptação de "Razão e Sensibilidade" e "Nanny McPhee" ensinaram algo sobre Travers e a situação que ela enfrentou na adaptação de "Mary Poppins"?

Emma Thompson - A grande diferença é que adaptei um livro como roteiro. Roteiros são concebidos para serem entregues a terceiros. Travers estava escrevendo algo que vinha da parte subatômica de sua personalidade, e não estava disposta a ceder controle nenhum, porque dependia daquilo emocionalmente.

Você pesquisou bastante sobre Travers? Ela era mesmo fria como o filme retrata?

Thompson - Kelly [Marcel, roteirista do filme] contou que os netos de Travers disseram que a avó havia morrido sem amar pessoa alguma, e sem ser amada por pessoa alguma.

Emma, o que você aprendeu sobre ela ao ouvir sua voz em gravações do período?

Thompson - As fitas revelam muito. Pode-se ouvir o incômodo, a tensão, a resistência e a determinação de sabotar na voz dela.

Você sempre manteve em mente que Travers enfrentava problemas financeiros quando cedeu os direitos de adaptação para "Mary Poppins"?

Thompson - Creio que isso seja parte vital da história. Ela estava sozinha.

Tom Hanks - Ninguém sabe o que disseram um ao outro no momento de decidir, mas aposto que foi algo relacionado a dinheiro. "Ei, boneca, você vai envelhecer e morrer sozinha. Não prefere ter muito dinheiro no bolso? Então, deixe que eu faça o filme."

Thompson - E não é só uma questão financeira. Ela vem da dificuldade permanente das mulheres, sobre a qual as pessoas escrevem desde a era de Jane Austen. O que você faz? Como ganhar a vida, se você não estiver casada com alguém que pague as contas?

François Duhamel/Divulgação
Emma Thompson, como P.L. Travers, e Tom Hanks, como Walt Disney, em cena do longa
Emma Thompson, como P.L. Travers, e Tom Hanks, como Walt Disney, em cena do longa

O filme aborda os limites do charme numa transação de negócios. Disney tinha charme. Travers se irritava com isso.

Hanks - Não consigo sorrir como ele. Meu sorriso tem um ar meio demoníaco. O dele era do tipo "que maravilha é estar vivo". E agia assim em toda parte -na ONU ou em qualquer lugar que visitasse.

Thompson - Estamos falando sobre dois extremos de um espectro amplo e variado, de um homem cujo charme era irresistível, e de uma mulher que se recusava a usar o charme. Ela tinha charme. Mas preferia não usá-lo.

Como você encontrou o caminho para interpretá-la?

Thompson - Foi difícil. Quando crio um personagem, faço um esboço, como se colocasse um papel sobre ele e traçasse seus contornos, e depois decido que pedaços devo exibir. O relacionamento entre pai e filha, a perda da capacidade narrativa do pai, sua perda de controle, de poder. São traços de conexão importantes para mim.

Meu pai teve um derrame aos 48 anos. Perdeu a capacidade de falar, e eu fui a única pessoa que ele permitiu que o ajudasse a aprender a falar de novo.

Eu tinha 18 ou 19 anos, e tentava ajudar meu pai, mostrando cartões com frases como "eu sou" e "você é". Encontrei essas conexões. Mas creio que a maioria dos artistas é fundamentalmente inconsolável. É por isso que persistem.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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