Folha de S. Paulo


Crítica: Mémorias do 'Lobo de Wall Street' real geram filme invulgar

Em primeiro lugar, "O Lobo de Wall Street", o filme, podia servir de exemplo a qualquer professor de roteiros, roteirista ou candidato a.

A tarefa consistia em resumir e transformar em base de imagens as quase mil páginas dos dois livros de memórias de Jordan Belfort, "O Lobo de Wall Street" e "A Caçada ao Lobo de Wall Street".

O desafio consistia em captar o essencial dos livros sem adulterar os fatos. Tratava-se de não "adaptar" (trair), no mau sentido da palavra. E, ao mesmo tempo, de construir a base para uma narrativa à maneira de Martin Scorsese.

O que Terence Winter fez foi, claro, suprimir certas ações e personagens, tornar certos momentos mais didáticos, de maneira a facilitar a compreensão rápida do espectador das sujeiras financeiras em que estava envolvido o fundador da Stratton Oakmont, Jordan Belfort.

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Leonardo DiCaprio como Jordan Belfort em cena do filme 'O Lobo de Wall Street
Leonardo DiCaprio como Jordan Belfort em cena do filme 'O Lobo de Wall Street'

Mas tudo que está lá é, basicamente, o que Belfort conta (foi dada mais atenção a "O Lobo" do que à "Caçada"), e os momentos essenciais da narrativa foram preservados.

Ao mesmo tempo, estamos num típico filme de Scorsese: um mixaria (Jordan), com a ajuda de outro (Danny) rapidamente abala Wall Street com sua audácia (não raro desonesta) nos negócios e no modo de vida, até começar a ser atormentado pelo FBI.

Não que Jordan Belfort seja um qualquer. Longe disso. Trata-se de um homem que voltou a inteligência a ganhar dinheiro loucamente, a transar com todas as mulheres que pudesse (de preferência sua própria mulher, a quem chama de Duquesa, e prostitutas em geral), e a ingerir todos os comprimidos de quaaludes, sua droga favorita, que tivesse à sua disposição.

Sua volúpia, o estilo de vida, "as loucuras", como ele chama, tudo que o credenciava a ser um jovem cadáver, nas previsões de Wall Street, está no livro. Inclusive uma retrospectiva percepção da futilidade desse tipo de vida. Inclusive o estilo de vulgaridade exemplar.

Vejamos como se refere a Nadine, a Duquesa, a mãe de seus filhos: "Foram suas pernas que lhe conseguiram o emprego; isso e a bunda, que era mais redonda que a de uma porto-riquenha e firme o suficiente para balançar um quarteirão".

O tom está dado. O que Scorsese fez foi partir desse personagem vulgar para chegar a um filme invulgar. O que faz de Jordan um personagem típico de Scorsese é o fato de sair do nada, tornar-se trilionário em poucos anos, e correr o risco permanente de voltar ao nada (ou, pior, de acabar na cadeia).

O que torna o filme tão particular e tão superior ao livro é que o Jordan do livro é o sujeito, o narrador, enquanto o do filme é personagem: não é mais ele que se vê. Ele é visto (apesar da narração, por vezes, em primeira pessoa).

Com isso, Scorsese serve-se de suas memórias para fazer uma análise sintética, porém aguda, do funcionamento desse capitalismo pós-industrial, no qual o que se compra e vende são, basicamente, quimeras, ficções. O que conta, como explica Mark Hanna, o mestre de Jordan Belfort, é a taxa de corretagem. Essa que vai para o bolso do corretor. É a parte real.

É essa tensão entre real e fictício que faz a base do filme. Pois reais são os filhos, aos quais Jordan tem apego, a Duquesa, e, sobretudo, os agentes do FBI. São estes, aliás, que entram como contraponto na história: a "gente comum", que vive honesta e modestamente. O filme é bem mais incisivo a esse respeito do que o livro, diga-se.

Existe uma diferença sensível entre "O Lobo de Wall Street" e outros filmes sobre esses zé-ninguéns subitamente elevados à riqueza e todo o tempo ameaçados pela autodestruição.

Jordan demonstra como esse mundo de desonestidade mais ou menos intrínseca consegue se recompor mesmo depois de ser apanhado com a mão na massa. Ele é o exemplo, e suas memórias best-seller não existem à toa: mesmo fora do mercado ele ainda é uma máquina de fazer dinheiro. Para isso vive.

O LOBO DE WALL STREET
AVALIAÇÃO regular

A CAÇADA AO LOBO DE WALL STREET
AVALIAÇÃO regular


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