Folha de S. Paulo


Crítica: Turguêniev cria personagens marcantes e definitivos em contos

No início de um texto maravilhoso, produzido pouco após a morte do amigo russo, Henry James comenta como a voz de Turguêniev ecoara a voz das "multidões vagamente imaginadas" que "estavam à espera de sua vez na arena da civilização, nas vastidões cinzentas do norte" (o artigo está incluído na edição da Cosac Naify de "Pais e Filhos").

Nada mais apropriado, neste momento de "rolezinhos" incrivelmente proibidos pela Justiça, de tudo o que acontece no Maranhão, de adolescentes gays que apanham até a morte, que seja publicada por aqui uma tradução de "Memórias de um Caçador".

Nós, que estamos também há tanto tempo à espera de nossa vez na "arena da civilização", podemos pelo menos nos impressionar com o fato de que o livro de 1852 tenha sido tão decisivo para a abolição da servidão na Rússia poucos anos depois.

Cláudia Kfouri

Infelizmente, um livro na atualidade —qualquer livro, em qualquer lugar— provoca muito pouco, é muito pouco decisivo seja lá para o que for.

Mas não é só pelo paralelo deslocado que as 25 histórias reunidas no volume interessam. Turguêniev foi um criador magistral de personagens e aqui, nas andanças do jovem caçador, o narrador, eles surgem definitivos e marcantes em poucas linhas nas mais diversas situações, seja num relato de como se morre naquelas paragens, seja numa impressionante competição de canto, seja no catálogo de superstições presentes na pequena obra-prima que é a história "O Prado de Biejin".

Nela, o caçador se perde com seu cachorro e, já com a noite avançada, encontra um grupo de meninos camponeses guardando uma manada.

Cada um dos cinco garotos recebe uma delicada descrição ("o quarto menino, Kóstia, tinha dez anos, e despertou minha curiosidade pelo olhar meditativo e triste. Seu rosto era todo pequeno, magro, sardento, de queixo pontiagudo, como um esquilo: mal dava para distinguir os lábios; contudo, seus olhos grandes e negros, que cintilavam com um brilho débil, suscitavam uma impressão estranha: eles pareciam querer exprimir algo para que a língua —a língua dele, pelo menos— não tinha palavras").

E é só em seguida que os casos vão se sucedendo —histórias de fantasmas, demônios, duendes—, amarrados com maestria pelo autor para que tudo termine, enfim, da maneira mais crua, seca e dessublimada.

É um grande livro. Torçamos para que, nas nossas "vastidões cinzentas", "Memórias de um Caçador" encontre seus leitores.

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.

MEMÓRIAS DE UM CAÇADOR
AUTOR Ivan Turguêniev
TRADUÇÃO Irineu Franco Perpetuo
EDITORA 34
QUANTO R$ 59 (488 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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