Folha de S. Paulo


Beijo gay da novela 'Amor à Vida' é momento histórico para o Brasil

Era um romance improvável. Félix tinha escapado por pouco da prisão depois de fraudar um hospital e de jogar o bebê da irmã no lixo. Niko havia acabado de se tornar pai, e a mulher que havia servido de barriga de aluguel para a concepção de seu bebê havia fugido com o antigo namorado dele.

Mas quando os dois homens se beijaram no final da novela "Amor à Vida", grande sucesso no Brasil, uma semana atrás, o país latino-americano parou. Foi a primeira vez que a poderosa Rede Globo de televisão transmitiu um beijo apaixonado entre dois personagens homens em seus 49 anos de história —um ponto de inflexão para um país que continua a ser profundamente conservador a despeito de sua reputação por um Carnaval ousado e biquínis sumários.

A controvertida cena dividiu o país. Políticos evangélicos protestaram contra a Globo, abrindo um processo contra a rede, enquanto ativistas dos direitos humanos saudaram o beijo como uma vitória para a mídia social —campanhas no Twitter e Facebook levaram crédito por ter forçado o maior monólito da televisão latino-americana a transmitir a cena.

Globo
Felix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) protagonizam primeiro beijo gay em novela da Globo em horário nobre no último capítulo de
Felix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) protagonizam beijo gay na novela da Globo "Amor à Vida"

"Assistir ao beijo entre Félix e Niko foi como ver o Brasil ganhar a Copa do Mundo", disse Jean Wyllys, o primeiro congressista assumidamente gay do Brasil. "Pode parecer uma piada, mas não é —foi um momento histórico".

Em um país 15 vezes maior que a França e onde um quarto dos adultos são analfabetos, as novelas de televisão desempenham papel fundamental na definição das normas culturais. Em 1975, uma novela da Globo abriu caminho para a legalização do divórcio no Brasil, o mais populoso país católico do planeta. Um estudo conduzido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento demonstra que os índices de natalidade caíram, de 1971 em diante, nas regiões em que a Globo tem maior audiência, porque as mulheres começaram a adotar como exemplo de comportamento os personagens femininos da rede.

Em 2012, pelo menos 40 milhões de brasileiros assistiram ao capítulo final de "Avenida Brasil", outra novela da Globo, ocasião que levou as companhias de energia a adotar medidas de emergência para evitar blecautes e até forçou a presidente Dilma Rousseff a adiar um comício político.

Mas para Wyllys, a cena entre Félix e Niko em "Amor à Vida" já deveria ter acontecido há muito tempo. Uma rede de televisão menor mostrou um beijo romântico entre dois homens já em 1990. Em 2005, a Globo filmou uma cena de beijo gay mas a vetou no último minuto. Tipicamente, apenas cerca de 20 a 30 capítulos de uma novela são escritos antes de ela entrar no ar - a rede depois conduz pesquisas nacionais de opinião para decidir como a trama deve se desenrolar.

Embora Wyllys esteja em campanha por um beijo gay na Globo há anos, desta vez ele contou com a adesão de centenas de milhares de usuários do Twitter e Facebook no Brasil, que usaram o hashtag "#beijafelix" para pressionar os dirigentes da rede de TV. Armados com a segunda maior comunidade mundial de Facebook, os brasileiros se voltaram à mídia social para desafiar o status quo social e político do país, lançando protestos maciços no ano passado e ameaçando novas manifestações antes das eleições presidenciais que acontecerão em outubro.

A Globo mesma se tornou alvo dos protestos do ano passado, e ativistas atacaram sua sede no Rio de Janeiro com coquetéis Molotov. Ainda que o conglomerado de mídia seja uma companhia de capital fechado controlada pelos bilionários irmãos Marinho, o grupo há muito vem sendo criticado por sua relação cômoda com as autoridades e seu controle quase monopolista das notícias e entretenimento no país.

"Os protestos de junho do ano passado ainda não acabaram, e esse é parte do motivo para que a Globo tenha respondido tão rápido à opinião pública desta vez", diz Dennis de Oliveira, professor de mídia na Universidade de São Paulo.

Diante da concorrência da TV a cabo, a Globo está sob pressão para satisfazer a classe média alta do país —a seção da sociedade que mais apoiou a campanha #beijafelix, de acordo com Wyllys.

"Cada cena de uma telenovela é consequência da história; é uma resposta às exigências do roteiro e reflete um momento na sociedade", declarou a Globo em comunicado. "Relacionamentos homossexuais sempre estiverem presentes em nossas novelas e séries, de maneira muito constante, responsável e natural", o texto afirma.

Para a crescente legião de líderes evangélicos ultraconservadores do Brasil, no entanto, o capítulo final de "Amor à Vida" foi qualquer coisa além de natural. O pastor e político estadual Sargento Isidório, que se descreve como "ex-homossexual", reagiu no Facebook, quarta-feira, publicando a cópia do processo que abriu contra a Globo.

"A família é a essência da sociedade, e deve ser preservada", ele escreveu em sua petição aos promotores públicos.

O deputado Jair Bolsonaro, direitista e ex-oficial do exército, conhecido principalmente por seu bloqueio à lei brasileira de combate à homofobia, também atacou a Globo, acusando seus roteiristas de tentar "difundir" a homossexualidade.

A popularidade da Igreja Católica caiu a seu mais baixo patamar no Brasil, e os evangélicos formam um dos mais poderosos blocos de votação no Congresso, promovendo uma agenda antigay que torna difícil para as autoridades combater uma onda de ataques homofóbicos. Entre 2007 e 2012, o número de homicídios relacionados à homofobia registrados no Brasil quase triplicou, para 336, de acordo com um relatório do Grupo Gay da Bahia, uma organização de defesa dos direitos dos homossexuais. Em parte, porém, afirma a organização, isso acontece porque os brasileiros hoje são mais abertos sobre sua sexualidade do que em 2007.

No entanto, Walcyr Carrasco, o autor de "Amor à Vida" diz que a reação positiva que ele recebeu depois do final da novela, na semana passada, é um sinal de que a sociedade brasileira pode enfim estar pronta a aceitar uma nova "normalidade". "Eu achava que o Brasil fosse um país conservador", disse. "Bem, isso acabou no último capítulo".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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