Folha de S. Paulo


Livro no qual '12 Anos...' se baseou traz relato cru da barbárie da escravidão

Cães ferozes, jacarés sorrateiros ou homens embrutecidos? Solomon Northup não sabia o que mais temer.

Desesperado, buscava fugir das correntes e dos chicotes que lhe incendiavam o corpo. Tentou nadar, escapar pelo pântano, ultrapassar a mata de troncos intrincados. Não conseguiu.

Tal como figura kafkaniana, ele se viu enredado num roteiro perverso que durou 12 anos. Descendente de escravo, gostava de ler e tocar violino. Labutava na lavoura e desempenhava várias tarefas no norte dos Estados Unidos, onde já vigorava o pagamento de salário.

Fox Searchlight Films
O ator Chiwetel Ejiofor em cena do filme '12 Years a Slave', de Steve McQueen
O ator Chiwetel Ejiofor em cena do filme '12 Years a Slave', de Steve McQueen

Casado, tinha três filhos. Era um homem livre negro que buscava trabalho.

Foi sequestrado e vendido como escravo aos 32 anos. Acordou acorrentado no meio da escuridão a poucos metros do Capitólio, no coração do poder, em 1841. Levado ao sul escravocrata de então, conheceu a rotina de crueldade nas fazendas de algodão que abasteciam a revolução industrial e a acumulação capitalista que fervilhava do outro lado do oceano.

Resgatado na Louisiana em 1853, Northup contou sua saga em "Twelve Years a Slave", publicado em 1859. Foi um sucesso. O país estava nas vésperas da eclosão da Guerra Civil (1861-1865) que acabaria com a escravidão nos Estados Unidos. Agora essa história está nos cinemas.

O livro, disponível em inglês gratuitamente na internet, é um testemunho cristalino da rotina das propriedades escravocratas.

Northup relata as sequências de chibatadas e surras. Fala da comida péssima, do travesseiro de madeira, dos andrajos que usava. Conta histórias de famílias escravizadas e partidas.

Descreve em detalhes como se organizava a produção nas fazendas. Lendo o texto, enxerga-se quais eram as dificuldades da colheita de algodão, como os movimentos do corpo deviam ocorrer para a produtividade aumentar, onde ocorriam os erros, as perdas que provocavam mais e mais punições aos trabalhadores.

Nesse cotidiano extenuante, noites de lua cheia eram de trabalho estendido aos escravos. Alguns ensaiavam fugas para, após serem recapturados e punidos com severidade, experimentar algumas horas de descanso.

O texto é simples, mas não simplório ou superficial. Quase jornalístico e em ritmo de diário, o relato de Northup tem vigor e consegue tecer suspenses. Sem rodeios, ele expõe os seus conflitos e tensões. Trata de como foi forçado a espancar uma escrava e de seus argumentos contra rebeliões tramadas.

Como se destacou ao saber tocar violino, ele foi obrigado a trabalhar em festas na região. Transitando entre propriedades, acabou colhendo impressões variadas que o ajudaram a construir um quadro histórico bem amplo e claro da realidade do sul escravocrata.

Narra casos de personagens solidários e de surtos de ira de patrões embriagados —para ele, pessoas brutalizadas pela escravidão.

Assim, mostra algumas das contradições daquela sociedade que logo iria desmoronar com a Guerra de Secessão. Uma autobiografia rara.


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