Folha de S. Paulo


Pedra no sapato do Guggenheim, Walid Raad vem à Bienal

Dias antes desta entrevista, o artista libanês Walid Raad enviou uma série de regras para a conversa. Ele não poderia ser gravado nem fotografado e pediu para ler as anotações do jornalista.

Raad, 46, um homem magro de cabeça raspada, tem a fala pausada e calculada. Usa metáforas cheias de belas imagens para descrever o mais sangrento dos episódios, da mesma forma que suas obras dissecam a violência que corrói o Oriente Médio com uma frieza ímpar.

Numa delas, ele chegou a inventariar os modelos de carros mais comuns usados em ataques com bombas e exibiu diagramas detalhados do motor e do chassi desses automóveis —em vez de mostrar a explosão, deixava ver só dados técnicos do veículo.

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Cena de vídeo da série 'Scratching on Things I Could Disavow', que começou na Documenta, em Kassel, na Alemanha, e continuará na Bienal de São Paulo
Cena de vídeo da série 'Scratching on Things I Could Disavow', que começou na Documenta, em Kassel, na Alemanha, e continuará na Bienal de São Paulo

Mas desde que ergueu a voz contra o Guggenheim, liderando um boicote à construção da filial do museu norte-americano em Abu Dhabi, por causa de denúncias de abusos aos trabalhadores da obra, Raad evita aparecer.

Talvez daí a paranoia diante desta conversa. Um dos primeiros nomes escalados para a Bienal de São Paulo, que começa em setembro, Raad está na cidade pesquisando para criar uma obra nova.

Ele quer investigar as relações entre a comunidade árabe do país e a cena artística, em especial a presença de artistas da região na Bienal. Muito antes da febre em torno de arquivos que se multiplicam em exposições pelo mundo, a obra de Raad sempre girou em torno da pesquisa e manipulação de dados.

No Brasil, não será diferente. Depois de fuçar os documentos acumulados em 30 edições da mostra paulistana, Raad pensa em mostrar uma versão distorcida dessa presença árabe na exposição.

"Olhando para esses arquivos, alguns fatos, figuras e gestos chamam a atenção", diz Raad. "É como se me chamassem para intervir neles."

Nesse ponto, Raad pode inventar a presença de artistas que nunca estiveram na Bienal, criar biografias falsas ou mesmo mudar a repercussão que algumas obras tiveram.

É uma investigação sobre o estado atual da arte "árabe" -as aspas são dele- no mundo, que serve ao mesmo tempo para tentar mudar sua interpretação, como se voltasse no tempo para extirpar preconceitos já arraigados.

Na onda da construção de museus que varre países emergentes, em especial na Ásia e no Oriente Médio, onde arte se tornou um símbolo de "distinção social", Raad está preocupado com o impacto da criação de novos significados e contextos para a produção visual da região.

"Tenho a sensação que o trabalho dos últimos 20 anos dos artistas da região está sendo sequestrado pela pressa em inventar uma história 'árabe' num contexto em que a arte se vê no meio de grandes fortunas", diz Raad. "Estamos no meio da transição."

É também uma transição em sua própria obra, que se distancia de uma descrição analítica da vida em "cidades sob constante ameaça", como sua Beirute natal, para avaliar o que significa ser artista hoje no Oriente Médio.

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Imagens da série 'Already Been in a Lake of Fire', de Walid Raad
Imagens da série 'Already Been in a Lake of Fire', de Walid Raad

MELHORES OBRAS E LEIS

Daí o boicote ao Guggenheim. "Esses novos museus [uma filial do Louvre entre eles] no Oriente Médio estão desatentos a como uma obra de arte pode ser afetada pelo que acontece na região", diz.

Raad então se juntou aos artistas que estavam na lista de aquisições do Guggenheim, evitando vender obras ao museu até que a situação dos trabalhadores, que denunciaram viver em regime de semiescravidão, fosse regularizada.

"Se eles querem construir a melhor infraestrutura para a arte, isso não deve incluir o método de construção? Se Abu Dhabi quer as melhores obras, não deveria seguir as melhores leis trabalhistas? Senti que só trabalhando juntos teríamos alguma voz."


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