Folha de S. Paulo


Autobiografia torna-se material para nova geração de autores no teatro

Por causa de um câncer, o pai da atriz Janaina Leite, em 2006, perdeu a voz. Morto em 2011, passou seus últimos cinco anos de vida se expressando por meio da escrita.

As cartas e bilhetes do período deram origem a uma criação teatral em que a atriz, integrante do Grupo XIX e jovem expoente do teatro documental, quebra um código: o do distanciamento. A exposição em público de sua vida íntima, assim como a do pai, rasga algo que parecia preservado há até poucos anos.

Crises pessoais podem ter impregnado processos de criação mundo afora, mas permaneciam sob o manto da ficção. O gênero documental que está sendo feito hoje em São Paulo leva o quadro a uma posição extrema, expondo todo tipo de ferida.

Ainda em processo, o trabalho de Janaina será exibido hoje, na abertura de uma mostra com criações similares reunidas sob o título de "Memórias, Arquivos e (Auto)biografias". Outros 12 artistas participam do projeto.

A atriz, em 2010, junto com seu ex-namorado músico, já havia levado a público sua própria separação. No fim do relacionamento, o casal organizou uma festa, registrou a situação em vídeo e usou o material em cena.

Para Janaina, a ausência da "rede de proteção" que gêneros ficcionais oferecem resgata um elo com o público. "Pode ser a exploração de um voyeurismo louco em uma plateia que se pergunta: o que é real e o que não é?", diz.

Há riscos. Para que o resultado não entorne o caldo de uma "egotrip", diz a atriz e autora, "é necessário elaborar uma linguagem que suporte a exposição". "Do contrário, a plateia se pergunta: por que raios você está me contando isso?"

Em "Luis Antonio - Gabriela" (2011), Nelson Baskerville propôs algo similar. Ele escreveu uma peça sobre seu irmão transexual, que abusou dele na infância. "A intenção não era chocar", diz, mas mostrar que o irmão "não assumia apenas o papel de vítima da história".

Para Baskerville, o trabalho não serviu como terapia, apenas "buscou novos caminhos para a dramaturgia".

O autor e diretor faz ressalvas ao gênero. "Se o artista fala sobre seu cotidiano, sobre como acorda, escova os dentes e diz 'tchau' para a mãe, isso pode resultar em um belo beijo no ego dele."

Distanciamento, conclui, é essencial para evitar dramalhões mexicanos.

CARGA SENTIMENTAL

Flavio Barollo, outro artista na mostra "Memórias, Arquivos e (Auto)biografias", assume: o trabalho que exibirá, no sábado, foi rejeitado em leituras anteriores por exageros na carga sentimental.

O artista usa em cena fotos, vídeos e objetos pessoais para falar de uma crise após o fim de um casamento de seis anos. "Foi uma morte", afirma Barollo. "Não sei se isso é cena, terapia ou 'egotrip'".

Além de abrir a própria crise ao público, Barollo sente que está expondo também seus familiares. Ele conta, entre outros casos, que usa em cena uma imagem em vídeo de seu pai chorando. "Filmei sem ele perceber", conta.

O pai de Barollo pretende ver o trabalho, mas o próprio artista está reticente sobre a possibilidade. "Seria forte demais, não sei se quero."

A demonstração de coragem, no entanto, é um mecanismo quase indispensável nesse tipo de obra. Em "Ficção", por exemplo, da Companhia Hiato, o ator Thiago Amoral contava sobre o episódio em que revelou à família que era gay, o que o levou a ser expulso de casa pelo pai.

É uma prova e tanto, principalmente porque o pai do intérprete-autor permanece em cena o tempo todo, ouvindo o filho. Pelo trabalho, Amoral é um dos favoritos da edição paulistana do Prêmio Shell, que sai em março.

"A timidez do meu pai é um elemento cênico muito forte", diz. Ele conta que essa exposição refletiu-se, mais tarde, em uma reaproximação —"agora somos mais parceiros"— e reviu outras relações familiares —"neste Natal, meus tios puderam atualizar a imagem que guardavam sobre quem eu era", conclui.

A crise, portanto, foi exposta antes mesmo de uma conclusão. Em tempos de realities, parece algo sintomático.

MEMÓRIAS, ARQUIVOS E (AUTO)BIOGRAFIAS
QUANDO qua., qui. e sex., às 20h, e sáb. e dom., às 18h30 e às 20h; de hoje a 2/2
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