Folha de S. Paulo


Canção do ano, 'Get Lucky', do Daft Punk, aponta mudança

"Random Access Memories" é um álbum que almejava um ouvinte perfeitamente ciente do esforço realizado para sua produção.

Trata-se do fato, muito alardeado, de que as faixas não continham samples; o elenco de músicos de estúdio lendários, e caríssimos, reunido para as sessões em Los Angeles, e os créditos da orquestra envolvida na criação do trabalho, com 22 violinistas e cinco trompistas.

Além disso, a campanha publicitária à moda antiga, com comerciais de TV e outdoors na Sunset Strip.

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A ironia é que a canção que serve de peça central ao álbum parecia ter surgido sem esforço — e se impôs como a melhor canção de 2013.

Do vocal de Pharrell a todos os demais elementos, "Get Lucky" soava como uma faixa na qual ninguém tivesse precisado suar a camisa, e ainda assim o resultado final pode ser considerado como uma das jogadas mais difíceis no rock e na música pop.

É assim: gravar uma canção nova que pareça instantaneamente familiar, como se sempre tivesse existido, como um clássico que o ouvinte tivesse esquecido por algum tempo e reencontrasse.

Dado seu imenso sucesso e o lançamento ruidoso — trechos nos intervalos de "Saturday Night Live", estreia muito bem recebida do vídeo no Coachella Festival— , "Get Lucky" tem algo de muito discreto e despretensioso, especialmente no contexto do pop atual.

Sem pirotecnias vocais, sem um refrão prenunciado por um break instrumental e — excetuado o uso ocasional de um vocoder (sintetizador de voz)— sem qualquer das marcas registradas dos discos do Daft Punk que se tornaram a assinatura sonora do pop dos anos 2000.

Em um álbum de grandes gestos sonoros — faixas episódicas que oscilam da música eletrônica às canções de musicais da Broadway, passando por disco music cafona e baladas— , o som de "Get Lucky" nada tem de ostensivo.

É apenas uma sucessão de pequenos e sutis prazeres: a forma pela qual a guitarra característica de Nile Rodgers se combina intrincadamente ao piano elétrico, a palavra "look" que Pharrell diz em tom casual antes de cantar o primeiro refrão...

O apelo reside quase inteiramente em sua melodia e em sua assinatura sonora.

O sucesso conquistado — 7,3 milhões de cópias vendidas nos cinco primeiros meses— parece indicar uma mudança de direção na música pop.

Deve existir algo de revelador no fato de que os dois maiores singles do ano — "Get Lucky" e "Blurred Lines", de Robin Thicke— nada tenham a ver com o rave-pop de fórmula repetitiva que domina as paradas nos últimos anos.

Depois das duas canções, qualquer artista que se apegue ao modelo antigo parecerá um tanto defasado — quer se trate de Lady Gaga, quer se trate de Jessie J.

Astros pop, produtores e compositores talvez tenham de se esforçar mais no futuro. "Vamos subir o nível", canta Pharrell. "Get Lucky" fez exatamente isso.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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