Folha de S. Paulo


Crítica: Obra respeitável vê pacote completo da vagina

A "Vagina" de Naomi Wolf merece atenção. A obra consegue sobressair na prateleira de lançamentos com formato de "achado do ano" ou "título que salvou minha vida neste mês" por conta do empenho dispensado.

Não falo de um novo hit entre livros de neurociência, mas de uma pesquisa respeitável feita por uma das mulheres que modificaram o tom vindo do discurso das feministas que queimavam sutiãs nos anos 60, dando atenção às barreiras na trajetória do empoderamento feminino.

'Porta-voz da vagina', feminista explora conexão entre cérebro e genitália em livro

Wolf foi uma das primeiras a dizer: "Calma que o Brasil é nosso! Não vai dar, minha filha, para criar os filhos, ser linda, fazer o songamonga do seu marido querer só você, ser presidente da Petrobras e ainda ter cabelos sedosos".

Editoria de Arte/Folhapress

Bem, se não foi isso, foi como entendi. E não consegui nada disso, só ter inveja de gente eloquente como ela, que além disso é bonitona e casou com o sujeito que fazia os discursos do Clinton, depois de cursar Yale e descolar uma Rhodes Sholarship, a bolsa de mestrado em Oxford para gente superqualificada.

Pois, certo dia, essa "mulher certificado ISO-9001" sofreu uma lesão lombar, vai vendo, e notou que não só a intensidade de seus orgasmos diminuíra como a sensação de euforia, o estado de glória, aquele bom humor pós-trepada (que por vezes nos faz querer trocar duas palavras com o ser amado, enquanto ele nutre o desejo de que viremos um litro de Coca e uma pizza) perdera a cor.

LIGAÇÃO

Após enfrentar uma delicadíssima cirurgia para religar a nervatura nas costas, Wolf viu a vida sexual voltar a lhe sorrir como d'antanho.

Daí quis entender a ligação entre a mente da mulher e sua vagina. E, por vagina, a autora entende o pacote completo: do nervo pélvico que começa no clitóris, atravessa "o buraco com a forma de Deus", como diria Blaise Pascal, inclui útero, trompas, tudinho, e dá na espinha dorsal, que, no fim, se liga ao cérebro.

Ela não estava brincando. Falou com cientistas, fisiologistas, psicólogos, xamãs, vasculhou os mais avançados centros de neurociência, investigou a identidade sexual feminina, desconfio, até com o jardineiro da minha vizinha. Ou, se não, deveria, porque esse sim conhece mulher.

Em 1966, os relatórios Masters e Johnson, "A Resposta Sexual Humana", definiram parâmetros liberais de sexualidade, numa época em que mulheres buscavam igualdade com homens, e concluiu que ambos os sexos atingem o êxtase de modo parecido.

O estudo levou em conta só o orgasmo clitoridiano obtido em condições de laboratório. Wolf o contesta. Diz que mulheres são seres bem mais complexos do que homens.

Barbara Gancia, que não é nenhuma especialista em sexo, ao contrário, só teve contato com o assunto em bibliotecas, mas adora passar os dias na horizontal, concorda.

Por quê? Ora, porque toda vez que fui instada a falar de vida sexual, eu menti. Como posso crer no relatório Kinsey? Ele não serviu para mostrar que ninguém diz a verdade quando o assunto é sexo? O tema é misterioso. Menos para homens, é claro.

Se entendi bem, o pênis é como uma luminária. Basta ligá-lo a uma tomada e ele funciona alegremente. Já a vagina seria um ecossistema complexíssimo, uma morada dos deuses, ou, na definição taoísta, um lótus dourado, que Wolf vê como "conjunto de redes vibrantes de nervos que enviam impulsos constantes à medula espinhal".

E, assim como a lua regula as marés, cada deusa dança à sua maneira e possui uma "impressão digital própria", com sua ramificação neuronal específica, diferentes segredos a desvendar.

GEOGRAFIA

A diferença é que as mulheres têm órgão sexual e reprodutivo no mesmo quarteirão, enquanto os homens têm um no Leme e outro no topo do Pão de Açúcar. E cada mulher tem seu jeito de atingir o orgasmo, que varia caso a caso, sem ter nada a ver com extroversão, cartão de crédito do parceiro ou doses de álcool consumidas na noitada.

Acontece por conta de diferenças nas redes neurais. Há quem só chegue ao clímax via clitóris, quem só conheça o vaginal, quem ache o ponto G, quem venha sem GPS. E pode haver variação no playlist, segundo o clima ou a época. São tantas emoções...

Não adianta tocar sempre a mesma música no seu sax, sua flauta ou seu trombone, amigo. É preciso variar som, tom e melodia. Já a mulher deve explorar melhor seu território. Quantas nem sabem quantos buracos têm?

Aliás, em vez de ficar elogiando e prestando tanta atenção no órgão deles, Wolf sugere que nós (quero dizer, vocês, gatas) paremos de subestimar a importância que eles dão às nossas vaginas.

E há razões para isso. O orgasmo romperia as barreiras do ego. A sensação de bem-estar pós-sexo libera opioides na forma de dopamina e oxitocina no cérebro. A oxitocina inibe o medo. Aplicada em ratas de pradaria, as faz encontrar parceiros logo.

Não quer dizer que você deva sair se injetando hormônios. Mas é bom difundir o dado de que preliminares não são frescura. A mulher precisa de tempo para que o cérebro ative a central da lubrificação, do relaxamento muscular, de procedimentos que vão prepará-la ao orgasmo.

Com ele em andamento e ela em estado alterado de consciência, centros que regulam o comportamento no cérebro deixam de funcionar. Isso tira inibições da mulher.

HUMILHAÇÃO

Wolf argumenta que, após visitar campos de refugiados em Serra Leoa, em 2004, concluiu que estupros em massa não são feitos apenas para "danificar estruturas pélvicas das mulheres pelo prazer do ato". Mas... peraí: o estupro em guerras sempre foi instrumento de humilhação e para eliminar o inimigo pela raiz.

Nicole Bengiveno/The New York Times
A escritora americana Naomi Wolf, autora de 'Vagina: Uma Biografia
A escritora americana Naomi Wolf, autora de 'Vagina: Uma Biografia'

É aí, do segundo terço para o final do livro, que começa uma encheção de linguiça sobre a afirmação masculina nada ter a ver com sexo.

Relatos sobre o obsceno, o afetivo, as tragédias da Inquisição, a xoxota dissecada por vários ângulos, de Cleópatra às mulheres de Henry Miller, o amor cortês, cintos de castidade, a retenção anal vitoriana, está tudo explicadinho com notas de rodapé de eminentes fontes, como convém a um título pretensioso que deseja esgotar o tema.

Mas não vamos deixar que a onipotência de Wolf leve a melhor, né? Nem que abuse de expedientes soporíferos.

Quanto mais livros como "Vagina" e menos sobre princesas encasteladas melhor. Mas não é preciso chegar ao ponto de bradar injustiça sobre mulheres brilhantes raramente aparecerem como seres sexuais, e então listar nomes de que nunca ouvimos falar para provar o ponto.

Quem são Christina Rossetti, Kate Chopin, Emma Goldman? Que eu saiba, Bill Gates, Warren Buffett, Steve Wozniak, vários homens brilhantes também não são grandes Casanovas. Sei não, talvez Naomi Wolf precise dar umazinha para relaxar.

VAGINA
AUTORA Naomi Wolf
TRADUÇÃO Renata S. Laureano
EDITORA Geração Editorial
QUANTO R$ 49,90 (367 págs.)
AVALIAÇÃO bom

*

Capa da edição brasileira vai de lírio 'suave'

Como vender um livro que tem por título uma palavra da qual, para sua autora, se tem vergonha? A capa brasileira traz uma mulher nua, com um piercing no umbigo, segurando um lírio. Para o editor Luiz Fernando Emediato, a capa "é bonita e suave. No nosso país, com tanta praia, não temos problema com o corpo feminino".


Endereço da página:

Links no texto: