Folha de S. Paulo


Crítica: Em texto preciso, Günter Grass enaltece as deficiências morais

Anunciado como a segunda parte da trilogia autobiográfica do premiado Günter Grass, "A Caixa: Histórias da Câmara Escura" trata à primeira vista de um relato sobre a vida de um pai da perspectiva de seus oito filhos.

Porém, já no primeiro parágrafo, um narrador em terceira pessoa anuncia o tipo de exposição a que o pai será submetido: seus filhos devem falar sem a intenção de poupá-lo, embora sejam inventados pelo pai e se expressem "de acordo com as suas palavras".

Sentados diante de um gravador, os filhos revolvem lembranças da infância, que os conduzem à figura misteriosa de Marie, inseparável companheira do pai, a quem cabe fotografar tudo ao seu redor com uma Agfa-Box 54.

Divulgação
Gravura que compõe o romance, assinada por Günter Grass
Gravura que compõe o romance, assinada por Günter Grass

Como sugere o título, são essas fotografias a matéria da memória dos filhos. Mas não se trata de fotos como as conhecemos. Nomeada por todos de "a caixa", sua câmera onividente produz imagens capazes de ver o passado, prever o futuro e revelar desejos da pessoa fotografada.

As falas dos filhos passam a gravitar em torno dessas imagens maravilhosas, que, emolduradas pelas ponderações do pai narrador, remetem a episódios anedóticos de sua vida e ao seu distanciamento da rotina familiar.

Em nove encontros, fragmentos do passado ganham forma em diálogos marcados pela interrupção e pela sobreposição de falas, pela oralidade e por um arremedo de linguagem infantil, que causam o efeito de uma transcrição de gravador. Já o narrador apoia-se num tom entre o conto de fadas e a narrativa bíblica, pontuado pela história de Jacó.

MÁSCARAS

Ao final, o que se anunciava como exposição franca de um pai senil por sua prole está mais para o deslocamento da própria perspectiva paterna por máscaras discursivas.

O resultado é um texto de aparência simples e precisa, que enaltece deficiências morais e de memória em detrimento de referências factuais claras.

Trata-se de um experimento autobiográfico nebuloso, em que prevalecem a elipse e a incerteza e no qual os pontos altos são menos as anedotas falsamente modestas sobre vida e obra de Grass do que as descrições das fotos de Marie --ao mesmo tempo metáfora para a imaginação do autor e remissão ao fascínio presente nos primórdios da fotografia.

Marie, aliás, representa Maria Rama, fotógrafa que acompanhou a família Grass por décadas e cuja figura aparece nas gravuras do autor reproduzidas na narrativa.

A CAIXA
AUTOR Günter Grass
TRADUÇÃO Marcelo Backes
EDITORA Record
QUANTO R$ 42 (224 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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