Folha de S. Paulo


Opinião: A vida é osso

"Penetrável Genet" é uma obra de arte urbana feita por Celso Sim e Anna Ferrari. Obra de múltiplos sentidos, atravessada pela história violenta do Brasil de ontem e de hoje, vandalizada na madrugada anterior à sua abertura, não se sabe ainda por quem.

Ela nasce da conjunção poética e inesperada entre dois textos também violentos. Um, do escritor francês Jean Genet, que instiga à ocupação artística dos cemitérios como um grande ato teatral, e outro do artista brasileiro Hélio Oiticica, um réquiem que reflete sobre a morte e a ressurreição a partir da descrição de um cadáver com as narinas cheias de cocaína.

A obra-experiência começa na entrada do cemitério do Araçá, como um percurso sonoro que nos conduz ritualmente à entrada no grande labirinto, um "quasi-cinema" - na expressão de Oiticica - situado no interior solene e sombrio do Ossário Geral.

Tuca Vieira/Divulgação
Detalhe do Ossário Geral no Cemitério do Araçá, parte da experiência 'Penetrável Genet'
Detalhe do Ossário Geral no Cemitério do Araçá, parte da experiência 'Penetrável Genet'

Ocorre que é exatamente nesse lugar que estão depositados os ossos dos desaparecidos políticos que estavam na vala comum de Perus.

Sublime e sagrado, o trabalho se tornou um feixe de significações políticas de alta voltagem, num país em que casos como o de Amarildo não nos deixam esquecer que o desaparecimento de pessoas não é uma prática que ficou perdida nos tempos da ditadura.

Agressores sem nome quebraram blocos de mármore, pixaram outros e espalharam ossos pelas alamedas. Dois dias depois, quando o trabalho foi aberto à visitação, as pessoas cumprimentavam os artistas como se estivessem em um velório. Simbolicamente, eles se tornaram o nosso elo tangível com todos aqueles mortos anônimos.

Como curador da 10ª Bienal de Arquitetura de São Paulo, que tem nessa obra uma de suas ações mais agudas e penetrantes, sinto o golpe da brutalidade e a potência reveladora de termos tocado naquilo que não pode mais se calar.

A cidade não é neutra nem amorfa. O "museu é o mundo", como queria Hélio. A vida é osso, e temos que abrir espaços de luta para sobreviver. Luta santa, cuja força é a consciência da fragilidade. A fragilidade da morte. A fragilidade da arte.

GUILHERME WISNIK é autor de "Lucio Costa" (Cosac Naify) e "Estado Crítico" (Publifolha)

PENETRÁVEL GENET
QUANDO de ter. a dom., das 12h às 16h (até 15 de dezembro)
ONDE Cemitério do Araçá (av. dr. Arnaldo, 666, Cerqueira César)
Inscrições gratuitas por e-mail; enviar nome, data e horário para penetravel.genet@gmail.com até as 18h um dia antes da sessão escolhida e chegar no local dez minutos antes de cada sessão


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