Folha de S. Paulo


Todo ator jovem em Hollywood usa drogas, diz diretor do filme perdido de River Phoenix

Na próxima quinta-feira (31), terão passados 20 anos de uma das mortes mais chocantes da Hollywood moderna. Na calçada da The Viper Room, casa noturna de Johnny Depp, o ator River Phoenix, uma das grandes promessas do cinema americano dos anos 1990, sofreu uma overdose de heroína e cocaína que o levou à morte com apenas 23 anos.

Uma das primeiras pessoas a ouvir a notícia foi o diretor holandês George Sluizer ("O Silêncio do Lago"), que filmava, em 1993, "Dark Blood", com Phoenix. "Foi um grande choque para mim. Horas antes de sua morte, River estava empolgado porque iria ter uma reunião com Terry Gilliam, um diretor que ele amava por causa de 'Brasil - O Filme'", recorda-se o cineasta, que esteve em São Paulo para apresentar o filme perdido de River Phoenix, que tem sua última exibição nesta terça-feira, na FAAP, às 19h, dentro da programação da Mostra de SP.

Sluizer, hoje com 81 anos, obviamente, não conseguiu terminar seu thriller esquisito sobre um casal (Jonathan Pryce e Judy Davis, de quem o cineasta ainda guarda péssimas lembranças e a quem se refere com palavras impublicáveis) que se perde no deserto e encontra um estranho garoto (Phoenix), morador de uma área de teste nuclear.

Divulgação
River Phoenix (à frente) morreu durante as filmagens de "Dark Blood", que também conta com Judy Davis e Jonathan Pryce
River Phoenix (à frente) morreu durante as filmagens de "Dark Blood", que também conta com Judy Davis e Jonathan Pryce

Em 1999, o cineasta conseguiu "sequestrar" a película que estava em Londres nas mãos da empresa seguradora do longa. "Eles iam destruir o original. Não fazem ideia do que é 'Dark Blood'. Perguntei se eles conheciam um filme chamado 'Titanic' e não sabiam do que se tratava. Deviam me agradecer de ter salvado o material", conta.

A ideia de remontar o filme, contudo, só veio em 2007, quando Sluizer sofreu um aneurisma que quase o matou e o deixou em uma cadeira de rodas. "Os médicos me deram apenas de dois a seis meses de vida, no máximo. Eu pensei no que poderia fazer neste tempo e vi que queria montar 'Dark Blood. Seria como meu último quadro'", confessa à Folha. O problema é que só existiam 65% da película em condições para uso. Os outros 35% precisariam ser completados. De início, rumores diziam que o irmão de River, o também ator Joaquin Phoenix, faria a locução em off, narrando a ação nunca filmada. Mas a família não apoiou o projeto e o próprio cineasta ficou responsável pela leitura.

"Dark Blood" ainda não foi liberado para entrar em circuito comercial ("Não sei se sou otimista ou bobo, mas acho que vamos resolver isso nos próximos meses", crê o diretor). Passou por festivais importantes, como o de Berlim, após estrear em Utrecht, no Festival de Cinema da Holanda, em setembro do ano passado, e será exibido em Hollywood pela primeira vez também nesta terça-feira.

Uma data importante para o cineasta, mas não espere uma relação de subserviência em relação à Hollywood. O Brasil representa uma carga emocional tão forte quanto os EUA para o holandês: ele rodou seu primeiro longa de ficção, "A Faca e o Rio", adaptação do livro do maranhense Odylo Costa Filho, no Brasil, e voltou inúmeras vezes ao país, chegando a hospedar-se na casa do diretor Eduardo Coutinho, no Rio.

Mas o vocabulário de português que aprendeu nas idas e vindas ao Brasil e Portugal se perdeu ao longo dos anos --principalmente, após o aneurisma. "Eu falava muito português, agora só me lembro de palavras básicas como obrigado", conta tristemente. Esse amor pela língua de Cabral levou George Sluizer a se transformar no primeiro diretor a adaptar uma obra de José Saramago para o cinema. Ele é o responsável por "A Jangada de Pedra", que também esteve na Mostra, em 2002.

Fanático pelo escritor português, o cineasta diz que passou anos tentando comprar, sem sucesso, os direitos de filmagem de "Ensaio Sobre a Cegueira". O livro foi adaptado em 2008 pelo brasileiro Fernando Meirelles ("Cidade de Deus") e é criticado pelo holandês. "Não sei como eu teria feito o filme, mas tenho certeza que seria melhor", dispara ele.
Leia abaixo os melhores momentos da entrevista com o diretor George Sluizer:

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Folha - O que está faltando para "Dark Blood" ir para o circuito normal de cinema?
George Sluizer - Desde setembro do ano passado que passo todos os meus dias tentando resolver problemas legais com a empresa seguradora, que, digamos assim, finge ser dona de parte dos direitos do filme. Quando tentei contatar essa companhia para ver se ela ainda tinha algum direito, seus representantes falaram que nem sabiam sobre o que eu estava falando, que não tinham conhecimento de nenhum filme chamado "Dark Blood". Perguntei para o presidente do holding que controla a companhia se ele tinha ouvido falar do filme "Titanic". Ele me respondeu: "Não sei sobre o que você está falando". Eu entrei em um mundo no qual as pessoas não têm o menor interesse cultural.

Mas qual o problema?
O problema certamente não é a divisão dos lucros caso o filme seja lançado, porque eles têm mais de US$ 80 bilhões de lucro por ano. US$ 500, US$ 1.000 ou até US$ 1 milhão não significa nada para essa empresa, porque lidam com bilhões. Um dos funcionário me perguntou quanto custou meu filme. Respondi que custou US$ 7 bilhões. E ela achou que estava certo. Eu precisei explicar que era uma piada, que não gastei nem US$ 1 milhão.

River Phoenix seria tão grande quanto Brad Pitt se não tivesse morrido?
Ele seria muito grande, porque tinha algo que poucos atores possuem: uma presença extremamente carismática. As pessoas automaticamente gostavam dele. Já o irmão dele, Joaquin, que faz bastante sucesso, não é carismático. Ele é um bom ator, mas não é amado pelas garotas, não tem o charme juvenil e simpático de River.

O senhor o considerava um grande ator?
Ele entendia seus personagens muito bem e atuava por instinto. Não dava para pedir para River fazer Shakespeare, porque ele era um pouco disléxico. Mas, no momento em que você pedia para fazer um personagem, ele sabia exatamente o que eu queria e traduzia isso de uma maneira emocional.

Phoenix tinha um histórico de envolvimento com drogas. Sua morte foi tão surpreendente assim para o senhor?
Foi um grande choque para mim. Horas antes de sua morte, nós organizamos uma reunião com Terry Gilliam, um diretor que ele amava por causa de "Brasil - O Filme". River estava empolgado para encontrá-lo. Você não espera alguém assim morrer horas depois. Durante as filmagens, nunca vi nenhum sinal de drogas. Obviamente, eu conhecia seu passado e só o vi chapado uma vez, quando veio em meu quarto de hotel, com um violão para cantar uma música que teria feito para mim. Mas, na preparação, passei quatro dias o tempo todo com River e não vi nada.

O senhor possivelmente saberia se ele estivesse usando drogas, já que trabalhou com alguns atores hollywoodianos conhecidos pelos pelas farras com álcool e cocaína.
Todo ator jovem em Hollywood usa drogas. Eu te dou US$ 100 se me apresentar um que não faça isso. Eu não conheço: usam álcool ou drogas pesadas. É parte da atmosfera de pertencer a um grupo de atores. Se você não utilizar drogas, está fora da família. Eu ficava espantado quando Kiefer [Sutherland, com quem trabalhou em "O Silêncio do Lago"] me chamava para as festas com os amigos e era muita cocaína e maconha.

Mas o senhor não usava nada?
Não era meu mundo. Eu fumei maconha quando era jovem e, de vez em quando, fumo para poder dormir, porque é como um bom sonífero. Mas River nunca interpretou chapado.

Como o senhor enxerga alguns atores como Lindsay Lohan, que parece seguir o mesmo caminho de River Phoenix, mas talvez com menos talento?
Felizmente, eu não preciso ver nada disso mais (risos). Eu ouço de vez em quando na TV que alguém morreu ou tem problema com drogas. Mas nada me surpreende. É parte do mundo de uma pessoa que faz sucesso muito cedo e entra neste furacão de hype que precisa exagerar tudo.

Houve boatos sobre Joaquin Phoenix ter sido chamado para fazer a narração em off das cenas nunca filmadas do irmão. Aconteceu essa aproximação?
Nunca. Joaquin não gosta da ideia do filme ser lançado ou exibido.

Que tipo de lembrança o senhor ainda guarda daquela noite em que recebeu a notícia da morte de River Phoenix?
As mais terríveis. Leva um pouco de tempo até você se tocar do que realmente aconteceu. No começo é como um acidente de carro e precisa resolver várias questões práticas. Não tem tempo de entender 100% o que aconteceu e que ele está morto e o filme que você trabalhou por três anos está morto. Quando tudo estava finalizado e todos foram para casa, eu fui um dos últimos a deixar Hollywood. De repente, eu fui atingido: percebi que não queria mais fazer filmes e que atores morressem em meus longas. Eu sempre terminei meus projetos, mesmo os mais difíceis. No entanto, pela primeira vez, me mostraram algo que eu não poderia vencer: a morte. Parei de me sentir a pessoa mais forte da Terra. Foi muito duro.

Foi difícil assistir ao filme depois de tanto tempo?
No começo, sim. Eu não era muito amigo de Judy Davis, então, certa vez, falei para mim mesmo: "Não vou assistir a esse filme, por causa dessa vaca". Era assim que eu pensava. Mas depois precisei admitir que há momentos que ela me emociona na tela. Porra, eu não gosto dela, mas ela me emociona!

O senhor começou a carreira como cineasta de ficção no Brasil. Como foi essa ligação com o país?
Eu queria que o texto em português de "A Faca e o Rio" fosse usado de forma extremamente correta. Fiz esse primeiro filme aqui, em 1972, e houve um momento da minha vida que pensei em imigrar para o país, mas o momento político não me satisfazia. Havia tanta música e uma interessante falta de noção nos olhos das pessoas, algo quase teatral. A atitude era de uma gentileza incrível. Eu pensava: "O Brasil é um país fantástico que ainda precisa ser construído". Vocês já fizeram muito, apesar de existir reclamações. Mas, em 50 anos, o Brasil passou de um país que não significava nada para uma nação importante.

Com "A Jangada de Pedra", o senhor foi o primeiro cineasta da história a adaptar José Saramago para o formato de longa-metragem. Chegou a ver a adaptação de "Ensaio Sobre a Cegueira", do brasileiro Fernando Meirelles?
Eu vi, infelizmente. Há muito tempo, pedi os direitos do livro para Saramago e ele concordou, mas eu estava ocupado com "A Jangada de Pedra". Quando fui falar com o agente dele para fechar o acordo em relação à "Ensaio Sobre a Cegueira", ele falou que um pessoal do Canadá comprou os direitos. Não havia um diretor no projeto ainda. Tudo bem, eles foram mais rápidos, acontece. Mas eu vi o longa e fiquei desapontado. O fato de [Fernando Meirelles] virar um diretor muito conhecido o leva a achar que tudo que faz é fantástico, e fica nesse lance meio americano, meio brasileiro. O filme não entendeu Saramago e sua mente, porque não dá para adaptar o livro para algo comercial. Me arrependo de não ter rodado o filme. Não sei como teria feito, mas tenho certeza que seria melhor.


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