Folha de S. Paulo


Crítica: Vargas Llosa reaviva personagens em narrativa com tempero 'dramalhônico'

A decepção com o fraco "O Sonho do Celta" fez crescer a expectativa do retorno ficcional de Mario Vargas Llosa ao país natal. Afinal, excetuando-se "A Guerra do Fim do Mundo", o Peru foi o cenário das suas grandes realizações, cujos derradeiros lampejos foram "Lituma nos Andes" e "Cadernos de Don Rigoberto".

Os protagonistas desses dois últimos romances, aliás, marcam presença em "O Herói Discreto".

Duas histórias se alternam: em Piúra --para onde volta o veterano Lituma em suas errâncias na função policial-- a tentativa de extorsão de um modesto comerciante, Felícito Yanaqué; em Lima, o casamento entre um empresário de peso, Ismael Carrera, e uma empregada doméstica, com a conivência de seu gerente e amigo, Don Rigoberto, o qual, prestes a se aposentar, é ameaçado pelos herdeiros "legítimos" e lesados (além disso, ele tem que lidar com as aparições de um mefistofélico senhor na vida do filho adolescente, Fonchito).

Carlos Jasso/Reuters
Vargas Llosa durante lançamento de seu livro no Panamá
Vargas Llosa durante lançamento de seu livro no Panamá

O título poderia ser aplicado aos dois, Rigoberto ou Felícito: cada um a seu modo enfrenta forças obscuras e ameaças; porém, é o comerciante de Piúra que se torna famoso em seu modesto heroísmo de cidadão comum e decente, ao não compactuar com a exigência de pagamento de uma quantia mensal aos que lhe oferecem "proteção".

O lado mais interessante das duas narrativas, afora os confrontos íntimos entre os personagens recorrentes de outras obras e as mudanças na fisionomia dos espaços sociais em que os conhecemos, é a incorporação de uma das modalidades mais insidiosas da criminalidade contemporânea: aquela que envolve os membros da própria família, sinalizando a ruptura de valores e gerações.

O tempero "dramalhônico", decalcado da paixão hispânica pelas telenovelas exageradas, faz com que um bom naco do livro seja bastante divertido. Contudo, a diluição implacável que vem corroendo a obra do Nobel 2010 aqui se faz aguda. O terço final, continuando a analogia, lembra o ritmo amorfo das nossas telenovelas atuais.

Pior ainda, a outrora multifacetada e polifônica visão do autor de "Conversa na Catedral" se resolve agora num elogio tão raso do conformismo pequeno-burguês que chega a ser chocante.

Num ensaio de "A Verdade das Mentiras", Llosa critiou acerbamente Graham Greene por se resignar a ser um "escritor eficiente, tímido e funcional". Se avaliado pelos seus últimos cinco romances, a caracterização cairia como uma luva para ele mesmo.

ALFREDO MONTE é doutor em teoria literária pela USP e criador do Monte de Leituras (www.armonte.wordpress.com)

O HERÓI DISCRETO
AUTOR Mario Vargas Llosa
EDITORA Objetiva
TRADUÇÃO Ari Roitman e Paulina Wacht
QUANTO R$ 39,90 (344 págs.)
AVALIAÇÃO regular


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