Folha de S. Paulo


'Phillips se tornava um babaca em alto-mar', diz Tom Hanks sobre personagem

Tom Hanks entra animado na sala do hotel Claridge's, um dos mais luxuosos de Londres. "Vocês participaram das entrevistas de 'Gravidade'? Acreditam que eles trouxeram metade do elenco para a Inglaterra", brinca o astro com os jornalistas, mas sem a recepção esperada. "Vamos lá, pessoal. Metade do elenco é apenas Sandy [Sandra Bullock, sua amiga]. A piada foi hilária! Admitam."

Há motivo para o bom humor. O ator sabe que o papel em "Capitão Phillips", de Paul Greengrass, está rendendo as melhores críticas a uma interpretação sua em mais de dez anos e nem o fato de ter anunciado possuir diabetes tipo 2 nesta semana tirou seu foco. "Só preciso comer direito, me exercitar e tomar os remédios certos que tudo fica normal. Faz parte da vida. Quando você envelhece, problemas de saúde aparecem. Mas estou muito bem", contou durante sua passagem londrina.

Vencedor do Oscar de melhor ator por "Filadélfia" e "Forrest Gump" em 1994 e 1995, respectivamente, Hanks fala sobre seu fascínio por filmes militares, a experiência de trabalhar com Greengrass e como foi retornar aos oceanos 13 anos depois de ficar ilhado em "Náufrago", de Robert Zemeckis --coincidentemente, sua última indicação ao maior prêmio do cinema americano.

No papel de um capitão de um cargueiro sequestrado por piratas somalis, episódio verídico ocorrido em 2009, o astro volta a interpretar um "herói comum" em um longa tenso e politicamente mais complexo em relação a outros blockbusters. Mas ele não deixa barato: "Capitão Phillips era um babaca quando estava em alto-mar."

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Folha - Você foi o primeiro a topar o projeto. Mudou algo nestes três anos?
Tom Hanks - Eu li a biografia do capitão Phillips e sabia que a Sony faria um longa. Eu entendi os fatos relatados, mas queria saber aonde o roteiro iria ao destilar o livro. Topei participar, mantendo minha integridade e a certeza que queria mostrar os eventos como aconteceram. Depois, encontrei Paul, que ainda não estava no filme, em Berlim. Tivemos um longo jantar, como se fôssemos um casal arranjado, sabe? "Ah, ele vai me odiar" ou "Não vou gostar dele". Mas começamos a conversar sobre os aspectos dos piratas. Por mim, os piratas bastariam ser assustadores e estava bom demais. Paul não estava satisfeito, porque queria incluir nuances sobre globalização e geopolítica que realmente mereciam entrar na história. Eu estava bem sabendo que Phillips era de uma maneira no início da trama, mas se tornava uma pessoa diferente no fim. Mas Paul queria os dilemas pessoais. Como cineasta ele tinha uma paleta inteira para criar e foi quando vi que teríamos muito trabalho pela frente.

Como foi fazer parte do processo de Paul Greengrass, que tem um jeito incomum de filmar, sem marcações e com bastante improviso?
Eu queria fazer parte da "experiência Paul Greengrass" desde que vi "Domingo Sangrento", em 1993. Provavelmente, um dos filmes mais magníficos que vi na vida e um dos mais difíceis também. Não é à toa que muita gente não consegue assistir, o que deve dar muito prazer para Paul (risos). Seu desejo por verossimilhança e por honestidade era a única forma de seguir com esse projeto. Ele não falava como queria a cena. Ele preparava o cenário e dizia: "Vamos ver o que acontece". Armado com o desejo de autenticidade, o trabalho está feito, nem preciso me esforçar.

Quais eram os dilemas enfrentados pelo personagem em sua cabeça?
Lembro de conversar com o Phillips de verdade e sua mulher, Andrea, e ele explicava como precisava colocar na mente tudo que pode acontecer de extraordinário em um dia comum no mar. Não é sequestro, mas brigas com sindicatos da tripulação, pausas para café, furacões, padrões marítimos. Andrea costumava viajar com ele de porto em porto, mas parou, porque ele é irritante quando está no oceano. Capitão Phillips era um babaca que só pensava em trabalho em alto-mar. Em terra, ele é engraçado, relaxado e fácil de lidar. Foi assim que imaginei minha primeira cena, com ele entrado no navio e verificando todos os detalhes de forma séria. Quando encontra o que está errado, briga com os responsáveis.

O que você precisou fazer para incorporar o personagem?
Em termos físicos, não teve muita coisa. Mas as sessões com o figurino foram engraçadíssimas. Eles [os marinheiros] se vestem da forma mais horrível possível. Normalmente, quando vou provar as roupas, peço para usar uma calça que deixa minha bunda bonita (risos) e, como estou em forma, testo com a camisa por dentro da calça. Mas foi o oposto neste filme. Pegamos o que havia de pior no guarda-roupa. Encontrei também alguns detalhes, como o fato de ele carregar o rádio o tempo todo na mão para não perder tempo. Não me importei com engordar um pouco e o cavanhaque ficou igual.

Filmar no oceano é algo complicado e demanda muita dedicação. Havia uma pressão extra para não errar na primeira tentativa ao rodar uma cena?
Como você está no ambiente real, você é colocado em um certo nível de preparação. Você aguenta o que for necessário. 90% das cenas eram feitas em longos planos do começo ao fim, sem parar, mesmo se não saíssem da maneira correta. E o fim de cada uma dessas cenas já impactava emocionalmente em relação à seguinte e trazia algo novo. Em alguns filmes, você tenta recriar a mesma inflexão de voz e é nosso trabalho, trazer a ilusão de que aquela fala é a primeira do personagem, mas acho que tudo que criamos importa no fim.

Você falou da diferença do capitão no mar e na terra. Você é assim também, mais sério quando está trabalhando?
Não, eu misturo tudo. Fazer filmes é uma diversão. Existe uma comodidade inegável na profissão. Você precisa ser um pouco tolo. Por exemplo, no meio das filmagens, alguém contratou um sósia de Elvis Presley para cantar "Love Me Tender" no navio antes de rodar a cena no salva-vidas. Você precisa apenas ser focado, senão não há energia para o trabalho. Não existe acidentes quando você precisa alcançar um certo nível de interpretação. Não acredito nisso, pelo menos.

Você não conheceu os atores somalis que fazem os piratas para obter uma reação mais forte, não foi?
Sim. Nós éramos mantidos em separado. Eu sabia que havia um pessoal, mas não sabia quem era quem. Eu os via treinando nos botes. A gente sabia que na terça, por exemplo, iríamos conhecer os sujeitos que fazem os piratas somalis. Havia um clima de tensão no ar. Ouvíamos eles chegando, e eles eram tão diferentes. Muito mais magros e intimidantes do que eu pensava. E eles estavam tão excitados pelo momento quanto eu.

Você encontrou o capitão real depois que ele viu o filme. O que ele achou de ter sido retratado de maneira mais simpática em relação ao líder do sequestro?
Ele falou que teve muito mais medo do que mostramos no filme, mas que capturamos bem as especificidades. Olhe, não tem ninguém dizendo que eles eram coitadinhos. O que tentamos mostrar foi uma compreensão maior do que é a Somália. Phillips tinha muito medo que os somalis acabassem com o estoque de khat [uma planta estimulante comum na África] que mascavam no navio, então fazia brincadeiras e competições de quem dava "nós" mais rápido. Ele tinha certeza que, assim que parassem de mascar khat, iriam atirar em alguém na cabeça.

A cena final é uma das mais poderosas de sua carreira. Como foi a preparação?
Cara, eu não sei qual o segredo. Você se arma de tudo e torce para não exagerar. Tivemos sorte, porque não sabíamos que íamos ter essa cena no filme. Mas um membro da tripulação real falou que só viu o capitão Phillips depois que ele saiu da enfermaria, então Paul quis rodar lá para ver o que conseguiria. As médicas são de verdade e pedimos para filmar com elas como se fosse um treinamento. Na primeira vez, não deu certo, mas depois que explicamos que ninguém ia se prejudicar se desse errado, a cena saiu. Não foi roteirizada, mas há vários momentos assim no filme. Quando o personagem de Barkhad Abdi fala "Olhe para mim, eu sou o capitão agora", isso não estava no roteiro e é uma das mais fortes do longa.

Como era sua relação com os atores somalis?
Neste dia? Terrível. (risos)

Não, como eles se comportavam no set, já que a maioria nunca havia trabalhado em cinema antes.
Eles são pessoas ótimas. A maioria faz parte da comunidade somali de Minneapolis. São artistas, nunca fizeram um filme antes, mas a diferença é apenas uma câmera apontada para sua face. Mas as brincadeiras eram as mesmas. Dentro do bote salva-vidas, a gente ficava tirando um sarro de Mahat [M. Ali, um dos piratas] porque ele não fazia nada a não ser fingir que estava manobrando. Era um grupo bacana, mas eram bem empolgados. Quando precisavam agir de maneira mais forte, eram um pouco desastrados.

E como você encarou esses processos movidos contra o Capitão Phillips?
Na verdade, foi apenas um ex-membro da tribulação que o processo logo depois do lançamento do livro. Pelo que sei, cada um desses homens pode escrever um livro ou fazer um filme sobre o episódio. Olha, são muitas pessoas participando de um evento. Eu não deveria dizer isso, mas sempre existe um processo (risos), alguém sempre processa.

Você gosta de interpretar homens comuns enfrentando situações de risco...
Acho que alguns personagens são heróis. Em "O Resgate do Soldado Ryan", existe todo um histórico de combate e de atos de heroísmo. É um sujeito que morre de medo de fazer a coisa errada e matar alguém. Nenhum papel que fiz é realmente um herói de fantasia, mas pessoas que estão fazendo seu trabalho como qualquer outra. Phillips era um homem experiente. Pirataria faz parte do trabalho de Phillips, mas ele ficava o tempo todo dizendo que estava esperando os "heróis chegarem" quando estava nas mãos dos piratas. Os filmes de hoje glamorizam o heróis. Eu não descreveria Capitão Phillips como herói, mas como alguém esperto que conseguiu se manter firme até ser resgatado. Não é um cara com uniformes e escudos na mão viajando para destruir a Estrela da Morte (risos).

Apesar do capitão Phillips não ser um militar, há toda uma operação de guerra para resgatá-lo. Por que você é tão atraído por filmes militares?
Olhe, os projetos sobre a Segunda Guerra Mundial vieram porque, quando eu era criança, tudo que os adultos conversavam era sobre a guerra. Eu nasci em 1956, o assunto era epidêmico. As vidas dele basicamente foram divididas por antes, durante e depois da guerra. Eu só soube que meu pai lutou no Pacífico quando eu completei sete anos. Então, os filmes que cresci vendo não eram sobre aquela guerra que eu cresci ouvindo. Havia um mistério, perigo e medo em seus relatos. Isso ficou comigo e sempre me fascinou. Em 1975, quando eu trabalhava em um hotel, um senhor que coletava a roupa suja sumiu por dez dias. Quando ele voltou, eu perguntei: "Ei, Richard, como foram suas férias?" Ele me respondeu que foi meio triste, porque alguns dos homens que ele conhecia não estavam mais entre nós, homens que ele pulou de paraquedas junto em uma região chamada Normandia. E ele estava recolhendo a roupa suja! Minha mente explodiu neste momento. Eu também li muita coisa sobre a guerra, mas gosto de outras coisas também.

Qual a importância do estudo da História em sua vida?
A História explica sobre quem somos hoje em dia. Só porque foi escrita cem anos atrás, você não deve se interessar? A humanidade vive repetindo os mesmo erros e não sei como essa geração vai se comportar, porque eles agem como se não precisassem saber de nada. A educação sobre História nos Estados Unidos... Vamos dizer que olham para mim como se eu fosse um especialista em História. Eu!? Eu apenas faço filmes e algumas minisséries históricas. Não escrevo um livro detalhado e não sou um professor que passa dois semestres dando aulas fabulosas sobre história. Um dos melhores cursos que tive no colégio foi sobre história americana, porque meu professor ensinava de uma maneira emocionante e empolgante. Os filmes podem levar as pessoas a tomar o interesse pelo tema, mas não vão substituir uma boa aula. Por isso que tento fazer todos meus projetos baseados em fatos com o máximo de realismo e precisão.

O jornalista viajou a convite da Paramount Pictures


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