Folha de S. Paulo


Musa e polemista do cinema nacional, Norma Bengell morre no Rio aos 78 anos

Famosa tanto pela beleza que lhe abriu as portas da carreira artística quanto pelas incontáveis polêmicas que fecharam várias delas, a atriz, cineasta e cantora Norma Bengell, 78, morreu na madrugada de quarta-feira (9), no Rio, vítima de câncer no pulmão.

Norma lutava contra a doença há pelo menos seis meses, e estava internada desde o último sábado no Hospital Rio-Laranjeiras, em Botafogo, zona sul do Rio.

Artistas lamentam morte de Norma Bengell; leia repercussão

Sua saúde vinha se deteriorando desde 2010, quando sofreu duas quedas dentro de casa e teve uma fissura na coluna, passando a usar cadeira de rodas. Solteira e sem filhos, vivia em Copacabana com uma acompanhante.

Seus últimos trabalhos foram no seriado "Toma Lá, Dá Cá" (2009), da Rede Globo, e na peça "Dias Felizes" (2010). A atriz também preparava uma autobiografia, "Coisas que Vivi", com lançamento previsto para 2014.

Em nota oficial, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, lamentou a morte de Bengell: "Além de seus filmes, que se tornaram marcas do cinema nacional, recordo sua coragem enfrentando nas ruas (...) a censura, a ditadura, e exigindo mais cultura. Merece nossas homenagens por tudo que representou."

Considerada "a mulher mais desejada do Brasil" nos anos 1960, nas palavras do ator Jece Valadão (1930-2006), Bengell atuou em clássicos como "Os Cafajestes" (1961), onde fez o primeiro nu frontal do cinema nacional, e "O Pagador de Promessas" (1962).

Foi também cantora bissexta, atuou em teatro e telenovelas, foi perseguida e exilada durante a ditadura militar e viu sua carreira ficar manchada pelas irregularidades no uso de dinheiro público em "O Guarani" (1996), que ela produziu e dirigiu.

Filha única de um imigrante alemão que trabalhava como afinador de pianos e de uma moça de família rica que foi deserdada após o casamento, Norma nasceu no Rio, em 1935, e passou a infância em Copacabana.

Aos 10 anos, seus pais separaram-se e ela foi viver com os avós paternos. Adolescente rebelde, foi expulsa de um internato de freiras alemãs e abandonou os estudos pouco depois.

Começou a trabalhar no início dos anos 1950, primeiro como modelo e, depois, como vedete do teatro de revista, onde também desenvolveu seu lado de cantora.

CINEMA

O convite para fazer cinema veio aos 23 anos, quando contracenou com Oscarito na chanchada "O Homem do Sputnik" (1959), de Carlos Manga, fazendo uma paródia de Brigitte Bardot.

No mesmo ano, lançaria seu primeiro LP, "OOOOOOh! Norma", com canções como "Fever" (sucesso na voz de Peggy Lee) e "Eu Sei que Vou te Amar" (Tom Jobim). O álbum chamou atenção por sua capa, com uma foto em que Norma parecia estar nua.

Dois anos depois, sua nudez explícita no longa "Os Cafajestes", de Ruy Guerra, causaria escândalo, tornando-a alvo de críticas violentas da Igreja Católica e de organizações como a Tradição, Família e Propriedade (TFP).

"Eu tinha uma consciência política, o que representava aquele meu passo de tirar a roupa, de ser apedrejada pela TFP", disse a atriz em entrevista ao programa "Roda Viva", em 1988.

Feminista declarada, defendeu a pílula anticoncepcional e a legalização do aborto (anos depois, afirmaria ter feito 16 abortos).

Sua atuação no premiado "O Pagador de Promessas", de Anselmo Duarte (1920-2009), rendeu convites para atuar em produções italianas e francesas, como "Mafioso" (1962), de Alberto Lattuada, e "La Constanza della Ragione" (1964), de Pasquale Festa Campanile.

De volta ao Brasil, atuou em "Noite Vazia" (1964), de Walter Hugo Khoury, e, durante as filmagens, se casou no estúdio da Vera Cruz com o ator Gabriele Tinti, em altar improvisado pelo diretor.

Em 1968, ano em que encenou a peça "Cordélia Brasil", de Antônio Bivar, em São Paulo, foi sequestrada no Teatro de Arena e levada ao Rio por três homens do 1º Batalhão Policial do Exército.

Lá, foi interrogada por cinco horas sobre "a subversão na classe teatral". Seria a primeira de várias detenções pelo regime militar, que a levaram a se exilar na França em 1971.

Quatro décadas depois, foi reconhecida pelo governo brasileiro como anistiada política e teve direito a uma indenização de R$ 254,5 mil, além de um pagamento mensal de R$ 2.734.

Sua atuação política durante a ditadura renderia ainda uma polêmica involuntária em 2010, quando a então candidata a presidente Dilma Rousseff colocou, entre fotos de sua trajetória pessoal, uma imagem de Bengell durante a Passeata dos Cem Mil.

O episódio foi tratado como uma tentativa de induzir os eleitores ao erro, devido à semelhança física entre ambas. "Acho normal. Não tem nada que pedir desculpas. Aliás, eu gosto da Dilma. Acho que ela é maravilhosa, uma mulher que sofreu muito", disse a atriz à Folha.

MÚSICA

Em 1984, filmou com Mick Jagger o videoclipe da música "She's the Boss", em que fazia o papel de "fazendeira decadente e autoritária".

"Cruzei as pernas sobre o dorso do Mick para roubar a cena e copulei feito uma louca, enquanto ele cantava. Cavalguei um garanhão, ele enlouqueceu. Claro, depois eu avisei: 'Olha, estou acostumada, só fiz isso na vida'", disse à época.

Além de atriz de teatro, cinema e novelas como "Partido Alto", da Globo, Bengell ainda gravou discos como "Norma Canta Mulheres", produzido por Guilherme Araújo.

CONDENAÇÃO

A carreira de Bengell como diretora seria conturbada desde o início, em 1987, com o longa "Eternamente Pagu", sobre a poeta e feminista Patrícia Galvão (1910-1962).

Ela atribuiu as dificuldades para conseguir verbas ao "machismo e misoginia" dos "burocratas da Embrafilme", e teve de recorrer ao então presidente José Sarney para conseguir financiamento.Também brigou com uma das roteiristas do filme e com críticos que deram avaliações negativas.

Cairia em desgraça após o imbróglio jurídico envolvendo a prestação de contas de "O Guarani" (1996). Fracasso de público e de crítica, o filme teve autorização do MinC para captar R$ 3,9 milhões via renúncia fiscal-- levantou R$ 2,99 milhões.

O MinC achou notas frias na prestação de contas e passou o caso ao Tribunal de Contas da União, que também acusou retirada de ªpró-laboreº (quantia que o produtor destina a si mesmo pelo trabalho realizado) em valor superior ao permitido.

O TCU determinou a devolução de R$ 3,8 milhões. A Justiça do Rio decretou a indisponibilidade de seus bens e ela foi indiciada pela Polícia Federal por lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita.

Em entrevista à Folha, em 2007, a diretora disse ter "a consciência limpa". Segundo ela, o ministério "implicou com uma nota dada por uma pessoa que não tinha pago ISS ou INSS, um 's' desses".

Bengell diz que, ao perceber que havia levantado mais dinheiro do que precisaria, devolveu R$ 500 mil ao MinC.

Ao fim do projeto, restou à produtora e diretora uma remuneração de R$ 17 mil.

"Falei 'não é possível!'. Era um trabalho de dez anos. Então, [integrantes da equipe] falaram que eu tinha de me pagar. Aí, peguei um dinheiro lá e botei no meu pagamento. Não avisei ao MinC, e isso não pode. Me dei R$ 400 mil."

Na mesma entrevista, disse que um dos processos que enfrentou foi arquivado, dois foram ganhos e outro estava em aberto.

"Se amanhã eu ganhar um Oscar, alguém vai falar: 'E 'O Guarani'?' É a única mácula na minha carreira", disse.

Olhando retrospectivamente para sua carreira, considerava-se "uma operária, uma trabalhadora de cinema".

"Foi o cinema que me fez conhecer o mundo inteiro, foi o cinema que me deu de comer, que me fez ser amada e odiada. Então, esse cinema é a minha vida", disse, em entrevista ao "Roda Viva".

Norma Bengell foi velada nesta quarta-feira (9) no Rio, e será cremada na quinta à tarde, no Cemitério do Caju, zona norte.

Editoria de Arte/Folhapress

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