Folha de S. Paulo


Nova edição da obra de crítico Mario Pedrosa religa arte e política

"Quando eu nasci, meu pai estava sendo procurado pela polícia e vivia na clandestinidade, escondido na garçonnière de um amigo. Homens vigiavam a casa. Ele foi preso, levou um tiro. Foi com um passaporte falso até Paris, depois para os Estados Unidos. Só voltou quando amainou a perseguição à esquerda."

Na sala atulhada de obras de arte de seu apartamento em Ipanema, no Rio, Vera Pedrosa nem parece estar descrevendo a vida de um dos maiores pensadores das artes visuais na história do país, de tão violentos os episódios.

Seu pai, o crítico Mario Pedrosa, que nasceu em Pernambuco na virada para o século 20 e morreu no Rio em 1981, foi um militante político que via a arte moderna, em especial o movimento construtivista, surgido nos anos 1950, como uma aliada dos movimentos revolucionários.

Em seus exílios pelo mundo, de Paris a Nova York, passando por Santiago e pela Cidade do México, Pedrosa observou a produção plástica sendo feita no calor da hora, sempre à luz das convulsões políticas do século passado.

Esse lado mais ativista da obra crítica de Pedrosa deve ganhar nova dimensão no ano que vem, quando a Cosac Naify lançar quase todos os seus escritos em volumes separados, dedicados às artes visuais, à arquitetura e também a questões políticas.

Embora seus ensaios sobre artes visuais já tenham sido tema de duas amplas edições no país, o volume político, que deve reunir até 350 textos inéditos, abre um novo olhar sobre seu pensamento.

"Ele foi o crítico que trabalhou de modo mais radical as fronteiras entre arte e política", diz Francisco Alambert, um dos responsáveis pela edição dessa vertente da obra. "A militância era sua missão. Sua crítica mistura memória e análise para explicar arte e também o país."

Nesse ponto, o ensaio que escreveu sobre o boicote à Bienal de São Paulo em 1969, às vésperas de partir para o exílio no Chile, revê a história política do país refletida nas obras de arte da época.

Pedrosa, aliás, foi um dos articuladores da vinda de "Guernica", o painel antibelicista de Pablo Picasso, à mostra paulistana em 1953.

"Ele via a luta antifascista do Picasso, do Miró e viu as grandes obras com um fôlego que ninguém igualou", diz Milton Ohata, que coordena a reedição da obra de Pedrosa. "Na cabeça dele, as coisas estavam juntas, e a gente vai mostrar essa ligação que hoje parece subterrânea entre sua crítica de arte e política."

BATALHA ESTÉTICA

No fundo, o crítico foi o artífice de uma "batalha estética". Pelo menos nas palavras de Lorenzo Mammì, que edita agora seus textos sobre arte, o olhar de Pedrosa foi em grande parte pautado pelo movimento de modernização do Brasil --a chegada da indústria que informou toda a produção visual concretista.

"Ele é um crítico que defende uma vertente. Entre formalistas e construtivos, ele fica com os construtivos", diz Mammì. "É com ele que entram as discussões mais candentes. Essa era a batalha."

E um ponto crítico dessa guerra foi a interpretação de Pedrosa para a obra de Alfredo Volpi. De certa forma, o crítico viu nos casarios e nas bandeirinhas desse artista uma espécie de embrião da abstração geométrica no país.

"Em lugar da atmosfera, estão padrões formais definidos por cernes lineares", escreveu Pedrosa sobre as pinturas de Volpi. "As paisagens se vão transmudando em um retalhamento de horizontais e verticais: mar e céu desaparecem em faixas coloridas, telhados viram triângulos."

Sobre Lygia Clark, uma "visionária do espaço", o crítico escreveu que suas peças "conjugam uma força expressiva orgânica com um dinamismo espacial matemático."

Outra análise de Pedrosa, sobre as construções arquitetônicas de Brasília, também serviu de âncora para seu pensamento plástico e turbinou por anos sua reflexão sobre os rumos do país.

Sua visão da cidade como "casamata impermeável", na "esperança que a vitalidade do país lá longe, na periferia, queime as etapas, e venha de encontro à capital-oásis e a fecunde por dentro", legou uma de suas afirmações mais célebres, de que o destino de um país sem um passado heroico, como o Brasil, é ser "condenado ao moderno".

"É condenado no sentido ao mesmo tempo positivo e negativo", diz Guilherme Wisnik, que edita os textos de Pedrosa sobre arquitetura. "É a modernidade não como estilo, mas a ideia de não ter um passado que constrange e ao mesmo tempo informa. Essa é a condenação moderna."

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Crítico terá publicação pelo MoMA

No ano que vem, o MoMA, em Nova York, também pretende lançar um grande volume, com cerca de 500 páginas, de textos de Mario Pedrosa, marcando um momento de redescoberta da obra do crítico. Essa será a primeira tradução de sua obra para a língua inglesa.

"Ele foi o maior crítico brasileiro e tem um corpo de trabalho muito extenso", diz Paulo Herkenhoff, que está coordenando a edição norte-americana ao lado da crítica Glória Ferreira. "Foi ele quem trouxe o Brasil para a modernidade no campo do pensamento crítico."


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