Folha de S. Paulo


Artista mais rico da China, Zeng Fanzhi simboliza a nova arte do país

Era 1998, e Zeng Fanzhi estava enfrentando dificuldades para encontrar um lugar que exibisse suas pinturas. O mercado para arte moderna chinesa mal existia. Graças à ajuda de uma nova galeria local, ele conseguiu exibir uma tela no saguão do hotel Ritz-Carlton de Xangai e ficou extremamente satisfeito quando o quadro --"Série Máscara nº 6"-- foi vendido por US$ 16 mil (R$ 35,2 mil, no câmbio atual, sem atualização) a um turista norte-americano de passagem pelo hotel.

Passados apenas dez anos, o mesmo quadro foi adquirido por US$ 9,7 milhões (R$ 21,3 milhões, no câmbio atual, sem atualização) em um leilão da Christie's em Hong Kong, o que faz de Zeng o mais caro artista asiático vivo --e do turista norte-americano que vendeu o quadro um homem muito feliz.

Hoje, Zeng é um ícone do mundo da arte e sua carreira serve como analogia para o desenvolvimento da arte moderna chinesa --talvez até da sociedade chinesa--, do realismo social utilitário de sua infância, na época da Revolução Cultural, à estratosfera dos salões mundiais de arte e preços milionários.

Chego para nossa entrevista em seu estúdio, em um famoso bairro reservado a artistas nas cercanias de Pequim, e encontro lá um oásis de serenidade, distante da poluição frenética e do barulho da capital chinesa. Um pátio interno com fontes de pedra e árvores altas conduz a um saguão de entrada dominado por um belíssimo Buda entalhado em madeira anterior à fundação da dinastia Tang, no ano 618.

Philippe Lopez/AFP
O artista chinês Zeng Fanzhi numa entrevista coletiva em Xangai em 2010
O artista chinês Zeng Fanzhi numa entrevista coletiva em Xangai em 2010

O saguão se abre, à esquerda, para o ensolarado estúdio de Zeng, um espaço de teto alto em cujas paredes estão posicionadas telas prontas e em processo de acabamento, uma mistura casual de milhões de dólares em suas criações. Com um dispendioso charuto cubano na boca, Zeng está ocupado com um visitante, contemplando uma maquete para sua nova exposição --uma mostra com 40 pinturas e esculturas de 1990 a 2012 que será inaugurada em outubro no Museu de Arte Moderna de Paris.

Um assistente me serve um delicioso café expresso, na área de copa anexa ao estúdio, e poucos minutos mais tarde Zeng surge, pedindo profusas desculpas por me fazer esperar e pela falta de ar condicionado no estúdio, o que ele explica ser necessário para que as tintas dos quadros sequem mais devagar.

Ele é deliberadamente polido e quase tímido, com seus modos graves e modestos, mas seus olhos parecem feitos de granito e, quando nos acomodamos no jardim do pátio, com uma chaleira de dispendioso chá chinês, tenho a sensação de que está acostumado a ser lisonjeado.

"Vivemos um momento de grande florescimento artístico na China", diz. "Nos anos 90, havia quase nada, e hoje temos incontáveis artistas. Não me cabe dizer se todos eles são bons; isso caberá ao futuro decidir".

É um comentário tipicamente oblíquo e diplomático da parte de Zeng sobre os milhões de falsários, imitadores e oportunistas atraídos ao boom da arte chinesa pela promessa de grande riqueza. Em lugar de desperdiçar tempo pensando sobre o estado do mundo da arte ou o estado do mundo em geral, ele diz que se concentra quase exclusivamente em sua pintura. Zeng insiste em que cada pincelada seja sua, e por isso ignora os finais de semana e passa 330 dias por ano no estúdio, com apenas um mês de férias no opressivo verão de Pequim, para viajar com a família.

A dedicação dele à arte vem sendo o traço de definição da vida de Zeng desde que nasceu, filho de um casal de operários em uma oficina gráfica em 1964, na cidade industrial chinesa de Wuhan. "Sempre fui mau aluno. Recusava permitir que as pessoas me forçassem a estudar coisas sobre as quais não me interessava, e só desenho e pintura me interessavam de verdade", diz.

Wuhan foi um dos epicentros da Revolução Cultural, iniciada em 1966 e que envolveu a perseguição ou morte de milhões de intelectuais, profissionais liberais e burocratas. Porque seus pais eram parte da classe operária, Zeng estava relativamente seguro, mas as convulsões que tomavam a sociedade não o deixaram incólume.

"Na época todos usavam as mesmas roupas, mas minha mãe gostava de coisas bonitas e às vezes usava cores --decorava suas roupas com flores cor de rosa", diz. "Por conta disso ela foi perseguida em função de seu 'sentimentalismo pequeno burguês' --e essa experiência afetou profundamente toda a minha família".

Ainda que a mãe de Zeng não tenha sido submetida às violentas "sessões de choque" que outras pessoas tiveram de suportar, a família foi humilhada em público por grupos de militantes da Guarda Vermelha, que colaram denúncias nas paredes de sua casa e na fábrica em que a mãe dele trabalhava, na forma de "cartazes de ideogramas grandes" --grandes cartazes escritos em caligrafia chinesa que são usados desde a era imperial para protestar ou difundir mensagens populares.

MAU ALUNO

Não muito depois disso, Zeng, ainda menino, começou a desenhar por prazer, e para escapar à monotonia da educação formal na era de Mao Tsé-Tung. Quando diz que era mau aluno, ele não está exagerando ou empregando falsa modéstia. Não concluiu o segundo grau, e deixou a escola aos 16 anos para trabalhar em uma gráfica como seus pais, e fazer aulas de pintura formal nas horas vagas.

Quando descobriu a existência de escolas de arte, decidiu se matricular mas, por conta de sua deficiência em matérias como matemática e ciências, ele fracassou no vestibular cinco vezes seguidas antes de ser enfim admitido pelo Instituto de Belas Artes de Hubei, aos 23 anos, em 1987. "Tive sorte por meus pais não me pressionarem ou desencorajarem; sempre me apoiaram demais, e a cada ano minhas notas no vestibular melhoravam um pouco, até que por fim consegui", conta.

Ainda que tudo que desejasse era ficar em casa e pintar, Zeng foi designado pelo governo para trabalhar em uma agência de publicidade recentemente criada, ao se formar em 1991. Era a aurora do setor publicitário na China pós-revolucionária. "Quando comecei, a única propaganda que podia ser exibida eram lemas políticos, mas isso não demorou a mudar", conta Zeng.

"Consegui conquistar um grande contrato publicitário para agência, e por isso não precisei ir ao escritório por um ano inteiro. Fiz alguns de meus melhores trabalhos naquele período".

Boa parte de sua educação formal tinha por objetivo criar obras de realismo socialista no tradicional estilo soviético, mas ele também criou apreço pelos expressionistas alemães e, em sua breve incursão pela publicidade, chegou a ler livros do guru publicitário David Ogilvy sobre como vender cerveja e camisas.

Suas primeiras obras importantes, entre as quais as séries "carne" e hospital", sombrias e grotescas, com personagens ostentando as mãos superdimensionadas que viriam a caracterizar seu trabalho, foram produzidas nessa época.

Zeng conseguiu abandonar o emprego e se mudar para Pequim, culturalmente rica, no começo de 1993, depois de vender seus primeiros quadros a Johnson Chang, renomado colecionador de Hong Kong. Em parte por recomendação do influente crítico de arte Li Xianting, Chang pagou US$ 8 mil por quatro grandes telas, que devem valer milhões e milhões de dólares hoje. "Na época, os dois [Chang e Li] eram as pessoas mais importantes no mundo da arte chinês, e foram eles que me permitiram começar", diz Zeng. "Não foi só dinheiro: eles me deram confiança".

COMER E BRINCAR

Em Pequim, ele fundou uma comunidade com a qual diz que podia "comer e brincar", e que mais tarde abrigaria alguns dos mais famosos artistas da China. Zeng também iniciou um processo incansável de renovação e reinvenção, adotando e rejeitando novos estilos em ritmo furioso.

"Consideramos Fanzhi como o maior artista chinês em parte porque suas imagens mudaram vezes sem conta", diz Nick Simunovic, diretor da filial da Gagosian Gallery, que representa Zeng fora da China, em Hong Kong. "Ele jamais está satisfeito com uma única identidade, e de muitas formas não para de melhorar; sua arte realmente mapeia o desenvolvimento da China".

Cerca de um ano depois de chegar a Pequim, ele começou a trabalhar na série "máscara", que mais tarde o tornaria multimilionário. As peças usavam estilo e técnica diferentes das obras anteriores e refletiam seu sentimento de que as pessoas da capital escondiam suas identidades umas das outras, e de si mesmas.

Ainda que suas pinturas de máscaras tenham sido seus maiores sucessos financeiros, em 2004 ele mudou radicalmente de estilo uma vez mais, dirigindo seus esforços ao estudo das paisagens e caligrafia tradicionais chinesas.

Ele menciona os pintores românticos, os expressionistas alemães, Cézanne, Picasso, a arte pop e pintores tradicionais chineses como influência, mas diz que sua vida e experiências têm o papel mais importante em dar forma ao seu trabalho. Suas obras mais recentes são dominadas por paisagens grandes, pintadas de forma complexa, distorcidas por florestas de linhas espinhosas, enquanto outros quadros contêm referências diretas a alguns dos pintores alemães de que ele mais gosta.

O mercado de arte passou por alguns ciclos assustadores de altas e baixas na última década, mas os preços das obras de Zeng se mantiveram notavelmente estáveis, diz Simunovic. Isso acontece em parte porque ele é muito conhecido nos círculos da arte fora da China, e porque a maior parte de suas peças são vendidas a colecionadores internacionais.

"A crise financeira [de 2008] foi muito boa para o mercado de arte chinês porque eliminou os especuladores e deixou os verdadeiros amantes da arte", diz Zeng. "Mas não teve impacto real sobre mim, porque o preço pelo qual vendo minhas obras é mais ou menos o mesmo não importa o que aconteça no mercado secundário".

Em 2011, o recorde de Zeng em leilões foi eclipsado por uma peça de 1988 do artista chinês Zhang Xiaogang, vendida por US$ 10,1 milhões em Hong Kong. Mas os preços da arte moderna chinesa continuam voláteis e sujeitos a ondas de compras especulativas, especialmente por parte de compradores da China continental. Na China pós-comunista, quem quer que tenha dinheiro por definição é um novo rico, ou baofahu (literalmente "explosão de pessoas da riqueza"), com todo o materialismo e consumo conspícuo que costuma acompanhar o enriquecimento súbito.

RECOMPENSAS DO SUCESSO

Zeng claramente aprecia as recompensas do sucesso --roupas de grife, relógios caros--, mas como muitos outros dos novos ricos chineses, ele parece agora estar em busca de algo mais substantivo. "Quando comecei, queria ganhar mais e mais dinheiro, e gastá-lo em carros caros e aviões, mas nos últimos dois anos realmente mudei muito", diz. "Creio que se todo mundo fizer tudo que fizer só pelo dinheiro, a sociedade está acabada".

À medida que enriquecia, sua vida e gosto se tornaram mais simples, e hoje em dia, diz seus únicos luxos são charutos cubanos e chá chinês fino, e caro. A maior despesa para ele são os 10 milhões de yuan (1,04 milhão de libras) que gasta por ano para operar sua galeria, cujo objetivo é apoiar uma geração de artistas mais jovens, dando-lhes espaço de exposição e permitindo que construam sua reputação.

O único momento da entrevista em que Zeng parece cauteloso e desconfortável é quando pergunto sobre o papel da política na arte chinesa. Ai Weiwei, artista dissidente mundialmente famoso, vive a dois quarteirões do estúdio de Zeng, em um complexo que costuma ser cercado regularmente pelos gorilas do ministério da segurança chinês. "Não é que eu não preste atenção à política, mas sim que dedico mais atenção à arte; não sou um artista político, ele diz. "Ai Weiwei é meu vizinho e não desgosto dele ou sinto ressentimentos contra ele; ele faz suas escolhas e tem seus motivos [para fazer o que faz]".

O charuto de Zeng está quase extinto e nossa entrevista está chegando ao fim, mas antes de sair pergunto o que aconteceu ao turista norte-americano que ganhou quase US$ 10 milhões ao investir em um quadro de um artista desconhecido, em 1988 em Pequim.

"Não lembro seu nome, mas ele veio a Pequim me visitar depois de vender o quadro no leilão [em 2008], e estava muito feliz pelo ótimo preço", diz Zeng. "Acho que ele queria saber que cara tinha o artista. Também fiquei feliz por ele ter ganho tanto dinheiro."

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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