Folha de S. Paulo


Crítica: 'A Reprodução' faz relato certeiro da babel de nossos dias

Examinar o presente é uma das melhores vocações do romance, há 300 anos; "Reprodução" cumpre esse desígnio com argúcia e profundidade.

A abertura nos chega por um narrador impessoal, quase um locutor de aeroporto, dando conta de que um certo estudante de chinês está por embarcar para Xangai; na fila, revê sua antiga professora, chinesa de fato, assustada, com uma criança pela mão; saúda-a e não tem tempo para mais nada, porque ela é levada por um agente, talvez da polícia, e em seguida ele mesmo é conduzido à delegacia local.

Aqui decola o romance: por dezenas de páginas vamos ouvir o depoimento do estudante a um policial. Ele vai explicar que não tem laço relevante com a ex-professora e expor sua visão das coisas.

Vai-se saber que ele trabalhou no mercado financeiro, mas está sem emprego, foi abandonado pela esposa há uns sete anos, dedica-se a ler "colunistas" e blogs e a intervir na internet, e crê que a China vai dominar o mundo, motivo pelo qual resolveu dedicar-se ao impossível idioma -para poder levar vantagem.

Na segunda parte, o estudante, já só, ouvido colado numa frágil divisória, acompanha a conversa de seu interrogador com uma colega, envolvida em investigações malsucedidas. Na fala dela há racionalidade e frieza policial, mesclada a exasperação e mistérios pessoais tudo ao final revelando-se trágico.

Uma terceira parte repassa a voz ao estudante, apresentando com maior nitidez os impasses, incompreensões e obscuridades do mundo tal como ele o vê e ao qual reage pateticamente.

Visto de perto, o estudante é um sujeito paranoico, fantasista, preconceituoso, irracional, agressivo, covarde, mentiroso e inteligente, tudo diluído na cordialidade brasileira.

Visto à contraluz, é um de nós, atormentado pela profusão de informações e alternativas, sem conseguir articular uma leitura de conjunto das coisas, no presente e no futuro --"E quem não fica deprimido com o mundo do jeito que está?", pergunta.

Bernardo Carvalho acerta a mão, a começar pelo ritmo perfeito de texto, inteligente mediação entre as exigências da fala e as convenções da escrita. A marcação cênica é econômica e precisa.

Dando conta irônica e certeira da babel de nossos dias, o relato se encerra de modo algo alegórico, que dispersa um pouco, mas não deixa extraviar-se a potência crítica de seu ótimo romance.

LUÍS AUGUSTO FISCHER é professor de literatura na UFRGS.

REPRODUÇÃO
AUTOR Bernardo Carvalho
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 37 (168 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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