Folha de S. Paulo


Criatividade suplanta técnica em álbum da dupla Body/Head

Em "Coming Apart", o primeiro álbum da dupla Body/Head, formada pelos músicos Kim Gordon e Bill Nace, não há notas erradas. E nem a possibilidade de que elas existam.

A música depende de acordes básicos, temas curtos repetidos, "feedback" e padrões repetitivos de duas guitarras, a dela no canal esquerdo e a dele no canal direito do mix. Cercada por espaço aberto e sem bateria, Gordon, por 30 anos integrante do Sonic Youth e uma espécie de consciência residente da geração do rock alternativo dos anos 1980 e 1990, especialmente de suas mulheres, canta com sua voz mutável.

Na ausência de uma batida marcada ou de melodias decoráveis, cada canção tem um arco dramático de alta compressão e forma um sistema próprio, calmo e fechado: o que quer que a voz e a guitarra de Gordon façam, o produto funciona.

Nos dias em que o Sonic Youth era uma das bandas mais experimentais e influentes do planeta, Gordon costumava dizer que não se definia como instrumentista.

"Não fui treinada como instrumentista. Mas cresci ouvindo muitos discos de jazz e John Coltrane", disse à reportagem.

Gordon, 60, viveu em Northampton, no Massachusetts, até 1999, pela maior parte do tempo com Thurston Moore, seu parceiro também no Sonic Youth. Os dois se casaram em 1984 e se separaram em 2011. O Sonic Youth acabou quando o casal se separou.

A ideia de tocar sem ser instrumentista tem a ver com a tradição de arte conceitual na qual Gordon foi criada. E definitivamente tem a ver com o cenário No Wave, que ela encontrou ao se mudar para Nova York no final dos anos 1970. Um dos credos do movimento, como o guitarrista e, para todos os efeitos práticos, historiador do No Wave, Alan Licht, recentemente definiu, era a "musicalidade dos não músicos", a "ideia de que se você colocar um instrumento nas mãos de uma pessoa, ela fará alguma coisa interessante com ele".

"Coming Apart", que saiu em setembro, oferece uma estranha magia que parece remontar ao Sonic Youth de começo de carreira, especialmente à participação de Gordon na banda: os trechos politonais e ocasionalmente arrítmicos de canções como "Early Americana" e "Shaking Hell".

Lee Ranaldo, do Sonic Youth, escreveu em um e-mail que ainda que ele e Moore tocassem guitarra ao modo tradicional, o uso do instrumento por Gordon "começa de um ponto livre e liberado". O baixista Mike Watt, velho amigo de Gordon, diz que "ela pinta com som e emoção para fazer música, não executa riffs ou cria temas".

É o momento de Gordon: além de "Coming Apart", uma retrospectiva de sua arte visual acaba de ser aberta na galeria White Columns, em Nova York. Ela está escrevendo sua autobiografia para a editora HarperCollins. A Sternberg Press logo publicará um livro com os ensaios que ela escreveu para revistas de arte e cultura no começo dos anos 1980. Ela continua seu trabalho paralelo como estilista e vai aparecer em um episódio da nova temporada de "Girls", série da HBO.

Boa parte da música de Gordon parece ser um experimento teórico, ou uma piada privada ou um experimento social distanciado sobre a resposta da audiência. Se isso vem de seu treinamento artístico, de sua personalidade ou de uma estratégia musical consciente, pouco importa.


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