Folha de S. Paulo


'Se um dia devolverem meu passaporte, quero visitar o Brasil', diz Ai Weiwei; leia íntegra

Leia a íntegra da entrevista do artista chinês Ai Weiwei à Folha, concedida em sua casa-estúdio na periferia de Pequim, onde vive cercado de câmeras de vigilância do governo e de seus 25 gatos.

Folha - Qual a sua situação hoje?
Ai Weiwei - Continuo sob pesada vigilância. Há câmeras à minha volta, meus telefones estão grampeados, eles vigiam quem chega aqui e eu não tenho passaporte para viajar. Ninguém pode mencionar o meu nome na internet na China, o que é de certa forma engraçado. Isso me torna mais popular na China, porque os jovens se perguntam: "Por que o nome desse sujeito não pode ser digitado na internet chinesa? E ninguém me diz claramente por quê e quanto tempo isso vai durar. Essa são as condições.
Havia uma expectativa de que o novo governo chinês, que assumiu o poder em março, trouxesse alguma abertura política. Algo mudou?
Sim, houve uma mudança em relação à liberdade de expressão. A mudança é que está ficando pior. O governo começou a prender gente por uma simples palavra na internet. Pode ser uma piada ou um comentário crítico. Usam qualquer outra desculpa para colocar pessoas na prisão. Isso tem acontecido com muita frequência nos últimos meses. Há muita gente presa. É difícil acreditar, mas está piorando.

O sr. tinha alguma esperança de que iria melhorar?
Não consigo ver sequer uma vontade de mudar por parte do governo. Eu acho que [a repressão] vai ficar mais rígida, porque a posição [do governo] está mais fraca e isso o deixa nervoso. Na verdade, eles perderam a capacidade de se comunicar, de realmente sentar e discutir os assuntos. Assim, eles ficam mais duros e menos pacientes.

De um lado, há promessas de reforma política, de outro o endurecimento político. Como isso se encaixa?
Isso é uma contradição da qual o governo precisa para sobreviver. Eles precisam abrir a economia, porque se os negócios não forem bem a sociedade não será estável. Mas a liberdade na economia exige condições políticas mais tolerantes. Eles tem lutado há décadas com isso: como obter crescimento econômico e ao mesmo tempo calar diferentes vozes e permitir menos liberdade de pensamento. Mas agora isso se tornou um problema, porque se não há pensamento independente perde-se a possibilidade de criação e de haver verdadeira competitividade. Os jovens perderam a paixão, a imaginação e a independência para criar. Eles não tem a habilidade que vem do senso crítico, como na estética e na filosofia. Por isso essas são áreas mortas na China. Se não é possível ter uma discussão sobre esses temas, como esperar que a próxima geração seja competitiva para enfrentar os desafios?

Seu blog foi retirado do ar pela censura em 2009. Como o sr. expressa suas opiniões?
Eu não posso ter formas de expressão na China. Tento fazer exibições de arte, mas há uma semana um museu privado veio me dizer que minha exibição estava cancelada. Isso já aconteceu várias vezes. Eu estava pronto para uma exibição e ela foi cancelada. Meu nome não pode ser mencionado na mídia chinesa ou na internet. Até a minha imagem é proibida em blogs ou microblogs. Então é bem difícil ter influência. Mas os jovens têm bastante consciência da minha existência. Eu me expresso no Twitter, que eu chamo de minha nação. Tenho mais ou menos 200 mil seguidores, o que é o maior número para um usuário chinês do Twitter. A cada dia eu tenho a chance de debater com eles e eles também repetem as minhas frases na internet doméstica. Elas são logo apagadas, mas ainda assim muita gente me conhece.
Eu chamo o Twitter de minha nação, o meu país. Porque tenho minha existência basicamente negada pela China. Nem mesmo um artigo crítico a mim pode mencionar o meu nome na China. O meu passaporte foi confiscado pelas autoridades. Minha existência é negada.

Liao Lulu - 23.ago.13/Folhapress
Ai Weiwei com um de seus gatos na casa-estúdio, em Pequim
Ai Weiwei com um de seus gatos na casa-estúdio, em Pequim

Qual é o impacto da internet na sociedade chinesa?
A internet chinesa é pesadamente censurada. E está ficando cada vez mais censurada. Recentemente o governo central adotou uma espécie de controle espiritual, um controle no campo do pensamento e da ideologia. Eles tem tem centenas de milhares de policiais na internet, e um sistema inteiro para identificar diferenças estéticas e de pensamento para apagá-las. Mas ainda assim a internet teve um grande papel no início de um movimento democrático. Um exemplo foi o julgamento de Bo Xilai [ex-dirigente comunista indiciado por corrupção e abuso de poder], que é um dos maiores julgamentos do último século. Os comunistas tentaram mostrar alguma abertura e provar que é um julgamento justo. Mas eles não podem impedir as pessoas de fazer um comentário. Então você vê uma informação do governo no Weibo [Twitter chinês] que teve 4 mil comentários, mas só 22 aparecem, aqueles que apoiam o governo. O resto foi apagado. Portanto, dá para ver como eles estão ocupados. Graças à internet, todos os dias as pessoas estão colocando o governo em julgamento. Cada informação ou fato é discutido muito amplamente. Geralmente são piadas, deboches. Tornou-se divertido. O que é um mau sinal, porque o governo perdeu gradualmente sua legitimidade. Um governo com mais de 60 anos no poder, nunca deixou seus cidadãos sequer verem uma cédula de votação. E nem existe um calendário para isso. [Poderiam dizer] "ok, você não vai poder votar agora, mas daqui a dez anos". Nem isso eles dizem. Eles acham que um bilhão de pessoas devem ser mantidos a vida inteira sem a chance de votar.

No seu caso, qual a fronteira entre o artista e o ativista político?
Sou um artista, mas antes de ser um artista eu sou um ser humano. Como ser humano você tem que ser ativo. Não posso deixar de ser político porque vivo numa sociedade política. Todo movimento, todo som ou forma é julgado por um poder político. Isso me empurra para uma condição bastante política. Mesmo se eu fingir que estou morto isso será um gesto político. Vivo num mundo que rejeita valores básicos, como direitos humanos, liberdade de expressão e de voto e independência do sistema judiciário. Como um artista numa sociedade como esta pode ser não político? Virou um ato natural dar a minha opinião. É só a opinião de uma pessoa, porque eles tem tanto medo? Há 80 milhões de membros comunistas, eles tem a polícia e todo o sistema. Mas se um artista estúpido faz um comentário isso faz você tremer? Isso é o que realmente eu não consigo entender.

A exposição de suas ideias fora da China pode ter o poder de mudar o país?
Como disse Martin Luther King, injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Os valores que temos são valores humanos. A China é um fator tão determinante hoje, afeta o mundo tremendamente e afetará ainda muito mais. Ajudar as pessoas a estabelecer um pensamento racional e expressar uma condição política que beneficia as pessoas para uma educação e uma sociedade abertas, isso é importante para a paz mundial.

A internet teve influência sobre a sua arte?
Tremendamente. Eu não estou tão interessado no esforço tradicional de fazer arte. Eu estou mais interessado em comunicação, em falar às pessoas. Como compartilhar ideias, ou fazer um gesto que pode ser entendido por pessoas que não sabem o que é arte. Eu amo o sorriso das pessoas comuns. Uma criança ou um idoso, a forma como eles veem o mundo. Para mim isso é o que importa. Não preciso ser categorizado como artista. Mas a humanidade e a forma de me comunicar, para mim é como água e ar.

Qual sua opinião sobre os artistas chineses que acham possível fazer arte sob as atuais condições políticas? O sr. foi bastante crítico ao escritor chinês Mo Yan, vencedor do Nobel de Literatura de 2012, por sua condescendência com o autoritarismo do Partido Comunista.
Eu acho que um artista que separa sua arte da política está fazendo um gesto extremamente político. Especialmente quando você vê uma pessoa ser maltratada ou tratada de forma violenta, virar o rosto para o outro lado é um gesto bastante político. É uma posição muito violenta. Não acho que é possível falar de arte sem relação com estética, e não acho que estética pode ser separada de valores morais e filosóficos. Isso é político. Muitas pessoas dizem que ele é um escritor habilidoso, que escreve com honestidade sobre a sociedade chinesa, o que talvez seja verdade. Para falar a verdade, eu não li para valer o que ele escreveu. Mas as posições dele sobre a sociedade, e o fato de ele ser parte do poder são bastante questionáveis. Como você pode ser um bom escritor e assumir posições políticas importantes numa sociedade que nega a humanidade e direitos básicos do povo? Posso entender se você prefere não falar sobre isso. Mas não entendo defender isso. Por isso eu fiz as criticas.

Seu ativismo político e sua obra artística se confundem. Sua vida tornou-se uma performance artística?
Não intencionalmente. Acho que a maioria das pessoas tenta escapar da arte, porque isso pode ser perigoso. As pessoas querem segurança e isso marca a maioria de nossas decisões. Segurança pessoal, para nossa família, nossos filhos. É assim que somos educados. Mas como artistas e poetas não buscamos isso. A busca é por uma condição de expressão única. Pela possibilidade de existir um julgamento de valor. As vezes isso leva ao perigo. A vida não pode ser separada do perigo.

O que pensa da arte de performance feita hoje no mundo?
Vejo tantos tipos de performance e usar o corpo ou a ação humana como parte da expressão não é diferente de usar outros sentidos para expressão. Também vejo a arte de performance como forma de retratar a arte em si. De determinar as regras e as disciplinas. São todas formas de comunicação. É difícil mencionar nomes, porque eu nunca acompanho realmente de perto [outros artistas]. Mas por exemplo, Marcel Duchamp agiu como se sua vida fosse uma performance total. Olhe o que Andy Warhol fez, ao transformar sua vida em uma mídia, tentando ter esse tipo de condição total para a sua arte, seja com entrevistas ou gravações ou televisão. É um tipo de performance.

Conhece algo da produção artística do Brasil?
Nunca tive a chance de visitar o Brasil, mas é uma terra que exerce grande fascínio em mim. Sempre ligo o país a cores vivas, à linda música e a uma vida feliz. Se eu um dia devolverem o meu passaporte, adoraria ter a chance de visitar o Brasil. O futebol não está na nossa cultura, mas é um tipo de expressão para alguns povos, que realmente mostra sua personalidade, sua paixão, sua energia. Eu realmente admiro e às vezes assisto.

Recentemente o sr. gravou um clipe de heavy metal mostrando as condições em que ficou preso. Por que decidiu se aventurar na música?
Tentei capturar um pouco do espírito brasileiro [risos]. Para mim é a forma de libertar essa inquietação por ter sido acusado de um crime que nunca realmente foi declarado. E desabafar a [angústia] de desaparecer de seus amigos e da família por quase três meses. Você não pode explicar realmente essas condições. Como artista, você tem que achar um jeito de expressar e transformar isso em trabalho. Estou fazendo o segundo CD, vai sair em um ou dois meses. A voz nos pertence desde o primeiro choro do bebê. Depois temos que chorar até o nosso último segundo. Não usar isso é um desperdício. Claro, as pessoas podem julgar se sou bom ou mau [cantor], mas não importa. O que importa é que tentei.

Pretende explorar outras formas de expressão?
Sim, muitas. Tenho muita atração por música. Fisicamente não sou muito apropriado para algumas experiências, mas eu gostaria de ter um time de futebol.

Antes de sua prisão, suas opiniões eram bem conhecidas publicamente por meio de seu blog. O que a polícia quis saber nos interrogatórios?
Antes de eu ser preso todos diziam "porque esse sujeito não é preso, ele fala tanto?". Por isso, eu estava me apressando para dizer o máximo possível, porque eu achava que isso me colocaria em evidência. Achei que, por ser conhecido, eles não me prenderiam. Mas eles me prenderam mesmo assim. Mas uma coisa que me deixou tranquilo durante a detenção foi que eu já tinha falado de tudo. Nem precisavam me perguntar, minhas opiniões eram todas conhecidas.

Que marcas esses 81 dias preso deixaram no sr.?
Eu estou bem. Meu pai ficou preso por muito mais tempo, ele foi condenado a seis anos e quase morreu na prisão. Depois que saí eu encontrei tanta gente que foi presa três vezes ou mais. Pessoas com 40 e poucos anos, mas que já tinham ficado quase 20 anos na prisão. Todas elas pessoas puras e inocentes, que só queriam compartilhar suas ideias. Então, ficar preso 81 dias não é nada. Fico até com vergonha de fazer um escândalo disso. Mas eu tenho uma responsabilidade de amplificar, porque há muita gente ainda na prisão.

No passado suas obras eram mais focadas no aspecto estético, mas aos poucos se tornaram cada vez mais políticas. A situação política na China aumentou a sua necessidade de ser mais explícito?
Eu sou profundamente afetado pelas minhas condições de vida. A razão que me fez querer ser um artista foi escapar da situação política. Depois da Revolução Cultural eu quis estudar arte porque a sociedade era política demais. Eu queria escapar. Achava que a arte podia me oferecer uma série de valores para me proteger da política. Ironicamente, 30 ou 40 anos depois, eu me tornei o artista mais político. Eu certamente seria bem menos político se vivesse nos Estados Unidos ou em qualquer outro país. E também seria muito menos conhecido. Talvez não fosse nem notado. Nada pode mudar uma personalidade que tenta encarar a realidade. Esse esforço ainda existe.

Como vê a cena artística na China hoje?
A China produz muitos estudantes de arte com alta capacidade técnica. A China tem uma longa história de bons artesãos e de compreensão das diferentes formas de arte. Mas, ao lidar com as condições atuais, também refletem uma tentativa honesta de escapar da situação política. Depois de décadas de repressão política, com seus pais e professores quebrados ou mortos, isso destruiu a imaginação e a paixão dos jovens artistas. Isso causou um prejuízo enorme. A cicatriz é visível.

Faz parte da cultura a repressão a quem ousa ser diferente?
Quando eu era criança meu pai me dizia: se uma árvore cresce muito, ela é destruída pelo vento. Se o papel é branco demais, ele acaba ficando sujo. O caçador mata o primeiro pássaro que voa. Esses são provérbios do idioma chinês, e não é à toa. Temos uma cultura que diz às pessoas não serem como eu. Eu não me conformo. Os chineses dizem que todo o mal sai pela boca. Há toda uma cultura que intimida a expressão.

Como é viver sob vigilância em seu país e ao mesmo tempo ter se tornado uma celebridade no mundo?
Não vivo no mundo, eu vivo na China. Basicamente passo os meus dias assim, de manhã aqui e à tarde no parque com o meu filho. Ser uma celebridade não significa muito para mim ainda. Mas algumas pessoas já me avisaram: um dia você vai ter seu passaporte de volta e não poderá andar na rua na Alemanha ou em outros lugares.

Quando viveu nos Estados Unidos o sr. costumava frequentar cassinos para jogar Blackjack. Como isso se liga à arte?
Tenho muitas experiências que não são conectadas à arte, mas que no final das contas acabam sendo ligadas a ela. São todos jogos humanos, em diferentes níveis. Como ter disciplina, administrar, controlar um jogo que não é sequer controlável. Mesmo assim você faz o esforço, às vezes um estúpido esforço. O esforço se transforma em prazer. Muitas vezes eu vejo uma criança fazendo um esforço por algo que não é possível, mas o prazer do esforço é tremendo para ela, e eu acho isso incrivelmente atraente. Pense num esforço humano, acho que a maioria é assim, até os mais adoráveis, como amor e relações pessoais. Ou escrever e fazer música. É tão difícil. Mas só a dificuldade nos aproxima da libertação. O que é liberdade? É fazer o maior esforço possível para superar os obstáculos.

Seu livro "O Blogue de Ai Weiwei" foi lançado recentemente no Brasil. Você se considera um escritor?
Eu adoraria ser um escritor. Meu pai era escritor. Acho que a escrita é a mais elevada habilidade humana, está diretamente ligada ao pensamento, à capacidade de comunicação e às emoções. Usar palavras é mágico. Mas não sou um escritor talentoso, eu não tive formação para isso. Mas eu digo para mim mesmo que enquanto eu puder me expressar claramente continuarei. É também uma grande responsabilidade.

Qual o seu próximo projeto?
Almoçar [risos]. O Almoço é necessário. Arte não é.


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