Folha de S. Paulo


Leia a íntegra da entrevista com o artista sul-africano William Kentridge

Vários artistas, ao longo dos últimos dois séculos, retrataram seu próprio o ateliê e a si próprios como estratégia para falar sobre as possibilidades da criação: do pintor francês Gustave Courbet (1819-1977), passando pelo cineasta George Méliès (1861-1938) e o modernista Jackson Pollock (1912-1956), até o contemporânea Bruce Nauman.
Todos eles são referencia para o sul-africano William Kentridge, 58, que também usa o ateliê como temática, segundo ele, "uma metáfora sobre o pensamento, sobre o processo de se chegar a uma ideia", disse à Folha.

Artista sul-africano leva animações artesanais e desenhos à Pinacoteca do Estado

Leia a seguir a entrevista que Kentridge concedeu por conta de sua exposição "Fortuna", em cartaz na Pinacoteca do Estado, na qual aborda muito sobre seu processo de criação:

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Folha - A complexidade de seu trabalho possui uma relação com a noção de obra de arte total, o chamado "Gesamtkunstwerk"...

William Kentridge - Quando comecei a estudar arte, na África do Sul, a expectativa que se tinha era ser um pintor à óleo. Para mim, foi uma grande descoberta encontrar artistas que desenhavam ao invés de pintar. Então descobri ainda que, mesmo fazendo teatro ou cinema, poderia ser incluído dentro de uma prática artística. E creio que isso se passou com muitos. Helio Oiticica e Lygia Clark são figuras chaves que também perceberam que a possibilidade da arte não estava só na pintura ou na parede. Para mim é interessante mostrar meu trabalho
aqui no Brasil, assim como na Índia, porque nessas sociedades há um questionamento sobre quem elas são. Elas não sociedades europeias, mas possuem vínculos com ela. É mais fácil fazer uma versão de Woyzeck em Johanesburgo que na Alemanha, porque na Alemanha há 400 versões importantes dessa peça e em Johanesburgo ninguém ouviu falar dela.
Então há muito mais liberdade de criação. Assim, há uma virtude em se estar nos limites da tradição.

Folha - Creio que sua obra lida muito com questões como essa, por exemplo, em seus personagens Soho Eckstein e Felix Teitlebaum, recorrentes em muitas de suas animações.

Kentridge - Sim, porque existe sempre a ansiedade de se estar no limite. Nós pensamos que não somos inteligente o suficiente, que no centro as pessoas entendem filosofia melhor do que nós... E assim, somos a sociedade "do o que isso poderia significar". Não entendemos Derrida, mas então imaginamos o que ele poderia querer dizer. Assim, estamos sempre fazendo uma tradução errônea (mistranlation). E eu acredito que traduções errôneas geram novas possibilidades de se rever o mundo, e isso é melhor do que boas traduções! Há mais virtudes em uma má tradução do que em uma boa tradução.

Folha - Além das animações, a mostra apresenta também objetos, esculturas. Elas devem ser vistas como parte do processo?

Kentridge - Há duas salas ou seções da mostra, que foram decididas junto com a curadora Lilian Tone, e eu as descrevo como sala do excesso. A ideia não foi reconstruir o estúdio, mas apontar como um projeto sugere ideias em outro, algo como esculturas que se transformam em filmes ou esculturas que viram uma procissão de sombras, um objeto de papel dobrado se transforma em um livro que vira um desenho e então um filme, ou seja, é sobre a migração de formas. Assim, não é tanto para mostrar o processo, mas com há um entrecruzamento entre distintas formas de trabalhar e distintos materiais.

Folha - Falando em cruzamento, gosto muito de uma citação sua que coloca, na mesma linha, Méliès, Pollock e Bruce Nauman.

Kentridge - Veja a tela de Courbet "O estúdio do pintor" (1855), as famosas fotos e filmes de Jackson Pollock com se ele fosse um pincel, e as obras feitas por Bruce Nauman em seu estúdio onde ele é a tela, há muitas relações aí. Assim vejo relações em Méliès, que se filmava no estúdio, com Courbet, que se autorretratou pintando, assim como Pollock também registrou sua performance de pintar.

Folha - Mas o que o levou a também se autorretratar nos filmes?

Kentridge - Foi após ver os filmes de Bruce Nauman, assim como ver os famosos filmes de Picasso e Pollock em ação. O que gosto deles é que são filmes que filmam como se trabalha, com uma temática sobre o que acontece em um ateliê. Assim, tanto o filme como o ateliê se transformam em uma metáfora sobre o pensamento, sobre o processo de se chegar a uma ideia.

William Kentridge
Desenho para o filme 'Stereoscope', de William Kentridge
Desenho para o filme 'Stereoscope', de William Kentridge

Folha - E a ideia de que é arte aquilo que o artista indica que é arte?

Kentridge - Bem, para mim isso nunca é suficiente, é preciso ter a possibilidade de iluminar alguma coisa, ter intuição, dar possibilidade de reconhecimento pelo observador. Acho que a posição duchampiana de o artista dizer o que é arte ser suficiente, para mim, nunca é suficiente, porque é uma posição arrogante, de quem está no centro.

Folha - Um dos aspectos mais instigantes da sua obra é seu caráter hipnótico, que prende o espectador, talvez por seu lado fantasioso, o que o relaciona com Méliès. O senhor poderia comentar essa estratégia?

Kentridge - Eu acho que é um resultado, mais do que uma estratégia. O meu interesse no Méliès não é tanto pelo seu tipo de fantasia que envolve anjos ou demônios, mas sobre as possibilidades do artista em seu próprio estúdio em frente às suas próprias pinturas, como Méliès fazia com suas pinturas e fazia performances em frente a elas, e assim usando todas as transformações que o cinema oferece. Eu me interesso em performances de transformação que nascem delas mesmas, como fazer sombras com suas mãos, ou a distorção de uma imagem com o uso de espelhos.
Em todas as animações eu me interesso em mostrar ao mundo como elas estão em um estado de transformação, não são um fato fixo. Ou seja, eu me interesso mais em processo do que fatos. Enquanto a foto é uma única imagem, um fato, um filme de animação é sempre não só sobre a passagem do tempo, mas sobre a transformação que é inevitável com a passagem do tempo, como uma paisagem que se recobre em um massacre que aconteceu lá, ou a memória esquecendo coisas, ou uma árvore que se transforma em pedaço de madeira, e em uma mesa e então em um livro, em fogo, em cinzas e em fumaça. Muitas das técnicas que uso são para tornar esse processo de transformação um elemento central.

Folha - Mas talvez um aspecto dessa relação com o que chama fantasia esteja relacionado com sua ideia de "cinema da idade da pedra", já que vivemos em um mundo com tanta tecnologia, e sua obra...

Kentridge - Minha obra é artesanal não apenas porque ela é basicamente feita com técnicas simples, mas para deixar claro para o observador a possibilidade de se trabalhar com materiais simples e que estão próximos. Assim muitas de minhas esculturas são feitas com cartolina e cordas. E isso tem a ver com a reutilização de materiais encontrados e sobre as metáforas que esses objetos encontrados propiciam.

Folha - Outro aspecto importante em sua obra é a música, certo?

Kentridge - A relação do som com a imagem é surpreendente e sem fim. Em muitas obras eu trabalho desde o início com o editor de som e o compositor tentando entender não que som acompanha a imagem, mas como o som pode fazer ver a imagem de forma diferente. Dependendo do tipo de som que se coloca em uma mesma sequencia, pode-se ter a impressão
dela ser editada mais rápida, mais devagar, ou que o movimento da câmera é mais sutil, ou então mais duro. O som tem sua própria vida, enquanto som, mas ele também transforma o que o olho enxerga.

Folha - Você trabalha com som ao mesmo tempo que produz uma peça?

Kentridge - Sim, na maioria dos casos. Eu levo de seis a oito meses para realizar um trabalho de animação e umas três semanas após o início costumo ouvir sons enquanto trabalho com imagens, junto ao editor de som e o compositor, tentando entender a lógica que o filme demanda.

Folha - Você trabalha com diferentes compositores?

Kentridge - Sim, mas nessa exposição a maioria dos trabalhos foram feitos pelo Philip Miller.

Folha - A peça de Kassel, "A recusa do tempo", também?

Kentridge - Sim, com ele também.

Folha - E como foi essa criação?

Kentridge - Esse trabalho levou dois anos para ser realizado. Fizemos workshops em Johanesburgo, com músicos e cantores, uma grande parte foi criada com uma orquestra desde o início do projeto.

Folha - E como teve início esse projeto?

Kentridge - Começou com uma conversa com o cientista Peter Galisson sobre a pré-história da relatividade, que tem uma relação com a pré-história do cinema, isso é sobre certos sentidos antes da invenção do cinema, no final de século 19. A conversa era como seria o pensamento sobre o tempo e o movimento em um momento antes da teoria relatividade de Einstein. Essa medição do tempo e a crença nele está atrás da série de projeções, filmes e sons que compõe "A recusa do tempo".
Algumas são sobre objetos mecânicos, outros sobre sinais emitidos e recebidos para se medir o tempo, outro sobre a grade universal de horários centrada no meridiano de Greenwich, criado em 1891. A maneira como se definiu as zonas de horários e que são tomadas como certas agora, isso é, o Brasil está cinco horas atrás, e a Europa, duas horas, por exemplo, é algo muito recente.
Antes disso, o tempo era um só, considerado a partir do sol. E, para mim, isso tem uma forte conotação com o passado colonial, já que Londres foi quem fixou o ponto, e isso também era uma forma de controle das colônias. Assim, "A recusa do tempo" é um manifesto"nonsense", algo que não se pode pretender. Mas a imposição dessa grade que cria a globalização do
tempo tem ecos em várias resistências anticolonialistas. Para mim, interessa olhar situações que parecem naturais e que, verdade, são nossas próprias construções.

Folha - Isso aponta outro elemento em sua obra, que é a questão político-social, mas que, ao mesmo tempo, não se contradiz com toda fantasia que ela carrega.

Kentridge - Veja a África do Sul e a mudança do regime do apartheid para o atual sistema democrático. Isso era algo imprevisível para muitos, que não viam como o apartheid poderia ser encerrado e qual o mecanismo para isso. Nenhum analista político tinha de fato noção de como se fazer essa transformação. Isso me faz perceber que é preciso estar atento para a ambiguidade, a contradição, a surpresa, e sobre o inesperado. Não apenas no mundo da arte, mas também na política, quando algo parece imutável, ele pode mudar e isso me faz ser suspeito de todo tipo de certeza. Para mim, toda reivindicação por certeza, seja política ou artística, possui uma agenda autoritária por trás dela. Por isso me interesso pela política, e particularmente por ambiguidades e contradições na política...

Folha - Isso, então, o aproxima de Machado de Assis.

Kentridge - Sim, certamente, com ele, não há muitos outros autores brasileiros que eu li, mas com Machado de Assis, definitivamente. Eu me sinto próximo em sua sensibilidade, por exemplo, em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", assim como em "Dom Casmurro", e também formalmente, com a leveza com que ele trabalha seu texto, com os títulos, nomes de capítulos. Agora que estamos falando disso, acabo de dar conta de que estou realizando um novo trabalho utilizando muitas frases que separei de "Dom Casmurro".
Com ele também me dei conta que esse tipo de modernismo não se localizou apenas na Europa, em Paris, há raízes do que é contemporâneo fora no centro. Machado surgiu no Brasil, e não em Portugal. Fernando Pessoa teve sua experiência formativa na África do Sul, o que lhe deu um senso de contradição para sua identidade, quando voltou à Europa.
Politicamente, há muita coisa importante que teve origem longe do centro. Na África do Sul, por exemplo, não há tradição espanhola ou inglesa, mas uma mistura de tradições.
Gandhi, que passou muitos anos na África do Sul, construiu o que ele era, não por ser uma pessoa indiana, não por conhecer sua herança indiana, mas por encontrar arquitetos judeus
que o apresentaram a madame Blavatsky (1831-1891), que partiu do misticismo hindu do século 19 de conversar com os mortos, ou seja, ele é uma mistura! E uma cultura diversificada é a esperança da cultura diversa.


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