Folha de S. Paulo


Filme feminista e drama no deserto da Austrália abrem competição em Veneza

O primeiro dia de competição do 70º Festival de Cinema de Veneza começou morno. Nenhum dos dois filmes apresentados na manhã desta quinta-feira (29) empolgou nas exibições para a imprensa e membros da indústria cinematográfica.

O filme responsável por abrir a mostra competitiva foi o italiano "Via Castellana Bandiera", primeiro longa-metragem da dramaturga siciliana Emma Dante, que também é uma das protagonistas da obra. Não foi uma estreia animadora, apesar da imprensa local, conhecida pelo bairrismo, ter aplaudido com entusiasmo ao fim da exibição.

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"Via Castellana Bandiera", que deverá ganhar o nome de "Uma Rua em Palermo" se um dia entrar em circuito no Brasil, é uma metáfora clara sobre o tratamento desigual dado às mulheres na Itália.

Emma usa o seguinte cenário: um casal de lésbicas (a própria diretora e Alba Rohrwacher) estão em Palermo para um casamento, quando começam a discutir o relacionamento e são impedidas de passar de carro por uma ruela quando uma senhora (Elena Cotta) fecha a rua ao vir da direção contrária.

A discussão se desenrola para ver quem vai tirar o carro do caminho e vira um retrato das tradições falidas e machistas da Itália. De um lado, a família da idosa representa a velha guarda, repleta de preconceitos e com a convicção de que a mulher serve para procriar e cozinha. Do outro, as lésbicas que não arredam o pé do local para combater a condição de desigualdade que impera no país.

O drama é histérico e mostra as fraquezas de Emma como cineasta de primeira viagem, abusando de ângulos "diferentes" e se esquecendo um pouco de criar simpatia em seus personagens.

HISTÓRIA REAL

Já o segundo filme do dia tem um verniz mais delicado. "Tracks", do australiano John Curran ("Homens em Fúria"), é a história real de Robyn Davidson, garota que atravessou o deserto australiano em 1975 acompanhada apenas de camelos e de sua cadela e que escreveu uma série de reportagens e livros sobre o assunto.

Robyn, interpretada por Mia Wasikowska ("Alice no País das Maravilhas"), é uma pessoa que busca superar a perda da mãe e que não suporta companhia (humana) por muito tempo.

"Eu tive uma experiência transformadora em vários sentidos", conta a verdadeira Robyn, presente na primeira entrevista da equipe do longa em Veneza. "Naquele período de solidão e no cenário lindo da Austrália, eu me encontrei como pessoa."

Hoje, aos 62 anos, Robyn diz que Mia foi "a escolha mais óbvia para o papel por causa de suas qualidades dramáticas e sua inteligência sedutora", mas ela desconfiou da atriz quando a conheceu.

"Ela parecia tão frágil. A levei para o deserto e achei que ela não conseguiria dominar os camelos", confessa. "Mas quando ela conhece alguns camelos na Austrália, foi diretamente ao encontro deles, sem medo. Semanas depois, Mia transformou-se em uma versão de mim mais jovem."

Mia, que também é australiana e não trabalhava no país havia 17 anos, estava no projeto havia dois anos, pouco depois de Curran assumir a direção --a Disney tinha os direitos de filmagens, mas nunca seguiu em frente, e os direitos voltaram para Robyn.

"Quando conheci a história de Robyn, fiquei apaixonada por aquela personagem. Parecia que eu tinha uma compreensão profunda de quem ela era", exalta a atriz. "Eu fiquei aterrorizada ao saber que iria encontrá-la".

A jovem de 23 anos, entretanto, acredita que a paixão pelo filme tem uma origem mais ampla do que a fascinação por um feito exploratório realizado há mais de 30 anos.

"O importante foi contar a história de uma mulher que voltou para o básico, pensando apenas nas necessidades básicas como comida, água e sombra para se proteger do sol. Foi importante fazer isso sendo de uma geração que se preocupa com e-mails, telefones celulares e em organizar apenas o dia seguinte."

Curran, infelizmente, pesa muito na análise íntima da personagem e se esquece de criar conflitos mais amplos, necessários quando se constrói uma jornada pela natureza selvagem.

A analogia sobre uma menina se reencontrando após uma perda faz parte de "Tracks", mas não podia ter virado a espinha dorsal do filme. Ou, como a própria Robyn Davidson diz: " Naquele tempo, eu não estava pensando em metáforas. Só tentava sobreviver".


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