Folha de S. Paulo


Leia entrevista com curadores da próxima Bienal de São Paulo

As bienais tem se tornado cada vez mais semelhantes a museus e os curadores da próxima Bienal de São Paulo pretender reverter esse processo. "Vamos falar para as pessoas sobre o tempo atual", diz Pablo Lafuente, um dos cinco curadores da mostra, programada para setembro do próximo ano.

O espanhol Lafuente, sua conterrânea Esche, Nuria Enguita Mayo, os israelenses Galit Eilat e Oren Sagev e o inglês Charles Esche contaram à Folha sobre os planos para a 31a. edição da mostra, em quase duas horas de conversa.

Bienal de São Paulo terá quinteto de curadores na edição 2014

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista:

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Folha - Charles, foi convidado para ser o curador da 31a. Bienal de SP, mas agora você aparece com um time de cinco curadores, todos no mesmo nível, como foi esse processo?
Charles Esche - Quando eu fiz o projeto, os nomes de todos os curadores nessa mesa já estavam mencionados. Então, desde o começo a ideia já era trabalhar com esse time, foi apenas uma questão de acertar a situação financeira. Assim, para mim, o convite individual sempre significou que eu representava esse grupo de cinco pessoas. É importante dizer que nós já trabalhos juntos há seis, sete, dez anos, como com Oren e Galit, ou com Pablo. Assim, em grupos de dois ou três nós já estamos juntos há muito tempo, e entendemos uns aos outro.

Assim, não foi o caso de eu ter consegui um trabalho e, então, buscado um time, mas de se eu conseguir esse trabalho, esse é o time. E o trabalho horizontal para mim não é uma questão, porque o convite foi para o time, e não apenas para mim.

Mas na história da Bienal de SP sempre há uma hierarquia: o curador principal, os co-curadores...
Esche - Como eu disse, isso estava claro desde o início para a Fundação Bienal. Aceitar meu projeto significava aceitar esse time.

Pablo Lafuente - É interessante observar que a Documenta (em Kassel, na Alemanha) não permite isso, é preciso ter um diretor artístico, como foi o caso na Documenta 12. Okwui tinha um time, mas ele sempre era o que assinava tudo, criando uma hierarquia. Mas se até agora não foi assim aqui na Bienal de SP, a instituição não reagiu negativamente a essa proposta, foi aceita facilmente.

Esche - Existe ainda uma tradição de equipes em mostras como a Manifesta [bienal europeia que ocorre em distintas cidades a cada edição] onde equipes acabaram se desintegrando, às vezes por falta de hierarquia. Em nosso caso, nós precisamos ter uma espécie de disciplina, nós podemos ter discussões privadas acaloradas, mas não como time. E nós podemos fazer isso porque trabalhamos juntos há muito tempo.

E todos vão se mudar para São Paulo?
Esche - Nós encontramos uma casa!! (risos)

Lafuente - Eu encontrei uma casa para eles! (risos)

Esche - Todos estarão definitivamente aqui a partir de janeiro, mas nos próximos meses nós estaremos aqui a maior parte do tempo, mas não todo tempo. Durante todo o período da mostra também estaremos aqui. Agora estar aqui significa estar baseados em São Paulo e poder viajar para outros locais.

Galit Eilat - E, até o final do ano, o que pretendemos fazer é organizar nossas agendas, assim, durante todo esse tempo, algum de nós vai estar aqui, e com isso sempre vai ter sempre algum de nós no escritório, em um sistema de rotação.

Lafuente - Essa é uma das razões de se ter cinco pessoas trabalhando no mesmo nível. Esse projeto é imenso, não apenas pelo tamanho do pavilhão, mas por tudo que se precisa fazer em paralelo, ao mesmo tempo. Por exemplo, o projeto educacional é algo que não existe na Bienal de Istambul (que foi curada por Charles Esche, em 2007), há muitas publicações revistas também e não consigo imaginar como uma só pessoa seja capaz de dar conta de tudo isso. Sendo cinco, um de nós pode cuidar da organização, enquanto outros viajam, e a pessoa que
estiver aqui nunca vai precisar pedir autorização para as outras sobre decisões a serem tomadas.

Nuria Enguita Mayo - Talvez o problema com times em outras bienais seja porque se juntaram pessoas que nunca haviam trabalhado juntas. Em nosso caso, isso é diferente. Nós já nos conhecemos e sabemos que no final haverá algo que vai agradar a todos e não um consenso, que pode matar todas as ideias. Nós também temos certas responsabilidades específicas. Eu vou cuidar mais das publicações, Pablo, do educativo, Oren da arquitetura e assim por diante. Nesse sentido, é um time, mas cada um tem uma responsabilidade, senão seria uma loucura.

Lafuente - Acho também importante dizer que isso vai contra um senso comum no mundo da arte que é a ideia de autoria, da proeminência dos nomes, que valoriza mais quem faz isso em relação ao o que é isso. Por isso, queremos focar em o que estamos fazendo ao invés de quem está fazendo. Isso é algo que de fato pretendemos investigar, mas que já queremos aplicar em nosso time. Não é uma exposição organizada por uma pessoa, mas por um grupo de pessoas trabalhando muito próximas. É importante apontar que é possível trabalhar dessa maneira para jovens artistas e jovens curadores, porque o sistema, em geral, valoriza os indivíduos.

Isso significa, então, que também se pretende valorizar o diálogo entre os trabalhos dos artistas na mostra? Porque nem sempre artistas gostam de dividir espaço...
Esche - O convite para os artistas será feito por um time, que tem um arquiteto nessa equipe e, nesse sentido, o artista não vai ter autonomia para definir tudo. Ele vai trabalhar com um grupo; se ele disser que quer um determinado espaço, nós vamos conversar sobre isso, mas podemos dizer que isso não funciona para nós. Ele pode dizer que não concorda, eu respeito, mas então ele não participa da mostra. Nosso trabalho é pensar em uma experiência que funcione para 600 mil pessoas e não apenas para deixar o senhor ou senhora artista feliz.

Mayo - Eu nunca trabalhei nesse sistema, mas estou muito empolgada, porque significa algo muito complexo, que é pensar no que o artista quer, no que nós queremos e também no que o espaço quer, não significa uma hierarquia, mas um sistema orgânico.

Oren Sagev - Creio que duas palavras são muito importantes: o local e o evento. Nem tudo pode ser aceito pelo espaço expositivo, nem todas ideias, e é importante respeitá-lo. Então, a ideia de colaboração tem inicio já quando se pensa no espaço. No caso aqui, o espaço é realmente incrível, ele nem cabe nas proporções de uma folha de papel. (risos) Mas esse espaço tem qualidades e parâmetros que vão ajudar.

Lafuente - Nosso plano é trabalhar com os artistas em diálogo, não convidá-los e, cinco meses depois, perguntar o que você preparou. Vamos estar em discussão permanente; a ideia é envolver os artistas em um projeto maior, não um projeto individual, com quatro paredes e uma porta. Desde o início vamos buscar envolvê-los em um projeto maior.

Então a maioria dos trabalhos será composto por encomendas para novas obras?
Eilat - Pensar em uma mostra dessa proporção em um ano e meio é um tanto ilógico para mim. O que significa pesquisar para uma mostra desse tamanho? Abrir catálogos e ver o que cabe na exposição? Isso não é pesquisa. O que queremos fazer é estender a possibilidade de entender o que significa trabalhar juntos, o que inclui ter um arquiteto no time, ou seja, um processo reflexivo. Cada decisão significa estar em diálogo com os artistas e, em conjunto, com o time de curadores, decidir se será um novo trabalho ou não.

Essa estratégia de trabalho em rede, de questionar o poder da hierarquia, lembra uma série de movimentos sociais que têm protestado em todo mundo e ganho evidencia com novas formas de organização, não?
Esche - Eu nunca pensei nessa relação, mas parece bastante natural, porque no meu jeito de trabalhar, seja no museu Van Abbe (onde é diretor, em Eindhoven, Holanda), seja na (revista inglesa) "Afterall", sempre foi assim, nunca houve um senso rígido de hierarquia.

Eilat - É há também uma espécie de rotação, todos nós temos nossas qualidades, somos diferentes e sabemos valorizar isso. Às vezes pode ser melhor deixar Charles na frente, às vezes pode ser bom deixar o Pablo. Falando dos movimentos sociais, há algumas expressões importantes, como a solidariedade que se vê entre duas pessoas e a habilidade, ao mesmo tempo, de se trabalhar junto. Mas não se trata de uma resposta aos movimentos sociais, mas em estar junto com eles.

Lafuente - É assim de fato que trabalhamos na?Afterall?, mas não é apenas uma coincidência com os movimentos sociais, porque esse tipo de estrutura funciona. Esse sistema permite estar aberto para o que está acontecendo por fora. Uma organização hierárquica tem mais dificuldade em engajar outras pessoas, porque aí é precisa encontrar lugar para elas na hierarquia, mas quando há mais espaço, há sempre mais possibilidades.

Mayo - Eu comecei a trabalhar há 20 anos e mudei muito. Aprendi muito nos últimos tempos com os movimentos sociais. Então estamos conectados. Quando comecei a trabalhar na Fundação Tàpies (Barcelona) aos poucos fomos alterando o modo de funcionar, tornando a instituição cada vez mais aberta.

E vocês podem falar de artistas que trabalham alinhados com esses conceitos?
Eilat - O que podemos dizer agora é que estamos interessados em práticas, não apenas práticas artísticas, que envolvem praticas artísticas e que envolvem outras práticas, ou seja, buscamos relações, seja com artistas, matemáticos ou sociólogos. Através da arquitetura, falamos do espaço e do evento. E o evento significa duração. Por isso, relação e duração são coisas que estamos de olho. Nós temos também um Dropbox, onde tudo que vemos e que é interessante, nós compartilhamos, mesmo apenas uma imagem. E isso é um exemplo da forma que trabalhamos.

Nós também não vamos usar a lista de artistas como um truque, ou seja, na véspera da Bienal divulgamos o nome de cem artistas, como em geral se faz. Nesse sentido nós vamos ser bem transparentes, tornando públicos todos os projetos que forem sendo definidos.

Esche - Nós de fato não vamos divulgar uma lista, mas ter foco no processo e divulgar, regularmente, o que vai sendo fechado.

Lafuente - Também queremos criar relações. Considero esse time como uma espécie de agencia de encontros e, por isso, vamos divulgar aos poucos relações que criamos, novas conexões, novas práticas, que surjam a partir dos encontros. Se trouxermos um artista do Kosovo para trabalhar em São Paulo, então isso poderá criar novas relações, por exemplo.

Então a Bienal terá um programa de residências artísticas?
Eilat - Sim. Residências artísticas, discussões abertas e workshops curatoriais, que são a parte social de nossa atividade. Quando falamos de evento, não se trata apenas do evento que acontece no espaço, mas do evento em geral. Já tivemos um encontro com curadores, outro com galeristas, então, de fato, já começou. E a partir de agora não serão mais grupos temáticos assim, como se eles não devessem se misturar.

Encontros com pessoas do mundo da arte, mas não apenas do mundo da arte, acontecerão o tempo todo.

Lafuente - E não só em São Paulo, mas no resto do Brasil, para tornar o processo o mais público possível. Todos nós ensinamos em universidades, então queremos também tornar esse processo educativo.

Bienais são eventos massivos e complexos, como professores queremos tornar transparente seu processo de realização.

Esche - Os workshops serão para jovens curadores, colocando eles em contato com um universo que talvez não fosse acessível tão facilmente, e isso significa um nível mais profundo de atuação. Com os encontros abertos queremos ter acesso a novos contatos. Em geral, se pesquisa em galerias, o que é normal e também vamos fazer, mas ao viajar pelo Brasil em encontros abertos, podemos acessas pessoas diretamente, o que entrevistas como essa podem motivar, fazendo que alguém nos procure diretamente.

Eilat - Isso também está relacionado com o momento pós Bienal ou a ressaca dela. Umas das questões que me pergunto é: o projeto vai acontecer e depois o que fazer? Eu gostaria de levar coisas que aprendi aqui para outros lugares. Nós somos agentes e trabalhamos em rede, então o que podemos levar daqui e trazer para cá? Não se trata apenas de mover objetos, obras de arte, é sobre a mobilidade de ideias e contatos.

A Bienal terá um tema?
Mayo - Sou completamente contra temas em exposições. Eu não acho que a arte deva ilustrar, e quando você tem um tema, acaba-se olhando tudo através de um tema. Arte não pode se uma ilustração. Ela até pode servir para ilustrar uma palestra, mas se você tem uma tema, a exposição já está construída. O que pretendemos é construir algo que realmente venha dos trabalhos, das práticas. Há questões que nos interessam, e nós estamos atentos a elas, mas não há um tema.

Eilat - Algumas coisas, contudo, nós trazemos do passado. Todos nós estivemos e estamos envolvidos com práticas políticas e sociais.

Então, se você pergunta se há um tema, aqui não será o lugar onde nós vamos nos converter em alguém diferente. Quando você falou sobre movimentos sociais e o que acontece ao redor, creio que nossa questão é como reagir a eles e não em como representá-los, como eles podem estar presentes sem representá-los, em como documentar isso. Em Israel, ou todo o Oriente Médio, por exemplo, há muitas representações sobre a ocupação, e o que é preciso fazer é ir além disso, engajar sem representar.

Sagev - E todos nós temos nossos interesses, mas estamos em um novo lugar, em uma Bienal que tem sua própria tradição, é algo que também precisa ser levado em conta. Então é preciso pensar qual o tipo de intervenção, o que não é a melhor palavra, qual o tipo de frequencia será criada nesse lugar por esse grupo.

Lafuente - É importante salientar também que a exposição vai falar sobre o hoje. Nós não entendemos esse evento como um evento sobre a história da arte ou sobre a história da Bienal, ou mesmo sobre história em geral. Nós vamos falar para as pessoas sobre o tempo atual.

Esche - Isso também levanta a questão para que, afinal, serve uma bienal. Há muitas situações interessantes no Brasil e podemos falar sobre isso depois. Uma coisa é clara: a Bienal já cumpriu o papel de museu na cidade, quando não havia museus aqui, e sobre isso se pode falar, sobre a introdução do modernismo e da arquitetura modernista para um grande público, afinal essa é uma exposição relevante. E esse papel se transformou, museus e instituições culturais surgiram desde 1951, quando a Bienal foi criada. Então também o papel da Bienal teve
que ser alterado. O que se pode observar, frente a essa cena crescente de bienais, é que muitas delas, recentemente, começaram a pegar emprestado técnicas de museus, fazem exposições museológicas, quando já tantos museus em expansão pelo mundo, como a Tate, o MoMA, o Hermitage. Todos eles cresceram de forma incrível! E bienais se tornarem museu parece uma reação um tanto inapropriada!

O desafio das bienais, possivelmente, e especialmente a partir dos anos 90, que foi um período de mudanças, inclusive no Brasil, foi se tornar uma zona experimental, especialmente em países da Ásia, onde vozes curatoriais se tornaram mais fortes e propuseram nova práticas, criando novas formas de exposição que iam além do cubo branco. Eu acho que é assim que deveria ser novamente, pois isso se perdeu no tempo, de certa maneira, ao copiar os museus. É compreensível. Quando se parece um museu, é mais fácil de entender. Nós queremos fazer uma bienal que tenha a mesma energia das bienais dos anos 90, como foi o caso da 24a. Bienal quando Paulo Herkenhoff usou da história da arte para falar daquele momento, no contexto brasileiro, da Antropofagia. E com isso esperamos chacoalhar essa onde de bienais museológicas.

Lafuente - O cerne da 24a foi a tradição do museu, talvez, ao menos sobre a história da arte nos museus ocidentais, enquanto para nós a história da arte não é nossa principal preocupação. Nossa questão é o que a Bienal pode fazer hoje, ou o que é possível fazer com ela e replicar a forma do museu não é o que acreditamos.

Minha impressão, então, é que vocês vão ter muito trabalho. Vocês disseram que chegam aqui com uma preocupação político-social e a produção brasileira, hoje, vive uma euforia do mercado, em vender obras fáceis e acessíveis, que é o que se vê nas galerias.

Lafuente - Por outro lado nós não trabalhos com artistas que não vendam trabalhos, nós não escolhemos entre quem vende e quem não vende. Nós optamos por trabalhar com artistas com obras significativas, de um jeito ou de outro. Em termos de Brasil, é um país tão grande, com uma cena forte, há muito que se observar. Nós vamos manter nossos olhos abertos.

Mayo - Claro que é mais fácil pesquisar nas galerias, mas nosso esforço é ir além.

Eilat - Minha questão aí é como as organizações sem fins lucrativos operam, porque o mercado esta aí, mas quão forte são as organização sem fins lucrativos no país, afinal elas são o equilíbrio. Além do mais, às vezes, artistas fazem certos acordos com galerias, eles querem fazer algo mais radical, mas acabam fazendo algo mais aceitável, e só isso é o que se torna visível. Então, esse é nosso papel, porque se houve demanda para trabalhos experimentais, nós podemos, talvez, chamar artistas que querem algum tipo de engajamento.

E por isso pergunto como museus e centros culturais ajudam nesse sentido.

Então talvez vocês devessem promover um encontro com artistas, já que já promoveram encontros com galeristas e curadores...
Lafuente - Mas, ao mesmo tempo, o Brasil tem, recentemente, várias instituições realizando mapeamentos da produção. Esse trabalho está feito e nós vamos usá-lo. Quanto aos encontros, nós vamos mantê-los, mas agora sem separar em categorias, porque quando se junta apenas pessoas da mesmo área, algumas questões acabam não sendo levantadas.

Então seria bom reunir pessoas que não possuem as mesmas urgências.

Seria bom reunir quem é do circuito da arte com quem não é para criar certos confrontos, por exemplo, que seriam mais amplos.

Esche - Você tem razão em dar voz aos artistas, mas podemos juntá-los com galeristas e curadores novamente. Seria bom, também, reunir grupos após textos publicados no jornal, porque aí eles já teriam lido algo e poderiam reagir a isso.


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