Folha de S. Paulo


Viúva de Saramago comanda em São Paulo leituras de clássicos reeditados do escritor

Há neste momento cem mil moedas de níquel com o rosto de José Saramago, circulando por toda a Europa, com o valor de 2,5 euros. O escritor foi o escolhido pela Casa da Moeda de Portugal para um programa europeu em que cada país celebra um autor: Cervantes, na Espanha, Stefan Zweig, na Áustria, James Joyce, na Irlanda.

"Fiquei perplexa quando me propuseram isso. Não há nada mais antagônico a Saramago do que uma homenagem numa moeda", diz à Folha a viúva do escritor, Pilar del Río.

Para a alegria da jornalista espanhola, presidente da Fundação José Saramago, há outras homenagens bem ao gosto do escritor. É o caso de um evento que acontece na noite desta terça (13), no tradicional palco do Teatro Anchieta, do Sesc Consolação.

A própria Del Río estará lá ao lado de três escritores que dialogam ou vieram a dialogar com a obra do Prêmio Nobel de 1998.

Os brasileiros Milton Hatoum e Andréa del Fuego (que ganhou o Prêmio José Saramago, em 2011, pelo romance "Os Malaquias") e o moçambicano Mia Couto farão leituras de trechos de dois livros importantes do escritor.

"Levantado do Chão" (publicado originalmente em 1980) e "Memorial do Convento" (safra 1982) estão de casa nova no Brasil. As duas obras, que faziam parte do catálogo da editora Bertrand Brasil, migraram agora para Companhia das Letras, que edita todos demais livros importantes do autor português, desde 1989.

"Levantado do Chão", como o próprio Saramago explicou numa palestra, em Turim, em abril de 1998, "descreve a vida de três gerações duma família camponesa, desde os finais do século dezanove até à Revolução de Abril de 1974".

Na mesma conferência, Saramago (1922-2010) disse o seguinte sobre o "Memorial do Convento", um de seus principais romances: "O título que definiu (pelos vistos de uma vez para sempre...) que se me aplique o rótulo de romancista histórico é, sem dúvida, 'Memorial do Convento'".

E mais adiante explica o que é, para ele, o tal romance histórico. "É uma ficção sobre um dado tempo do passado, mas visto da perspectiva do momento em que o autor se encontra, e com tudo aquilo que o autor é e tem: a sua formação, a sua interpretação do mundo, o modo como ele entende o processo de transformação das sociedades."

No livro, o escritor conta como D. João 5º ordenou a construção do monumental Convento de Mafra, e a história de um de seus operários, Baltasar Mateus, por sua vez apaixonado por uma moça chamada Blimunda.

A importância de "Memorial do Convento" para a difusão da obra de Saramago foi tamanha, e igualmente o carinho dele pela personagem, que "Blimunda" é o nome da revista que a Fundação José Saramago publica, em formato digital --e era com "blimunda" que começava o endereço eletrônico do escritor.

LISBOA-BELÉM

As frases de Saramago sobre sua própria obra citadas logo acima virão a público ainda este mês, com o lançamento de um importante livrinho editado pela fundação portuguesa em parceria com a Universidade Federal do Pará, em Belém.

O volume, batizado de "Da Estátua à Pedra", inclui a palestra feita de improviso pelo escritor ao final de um seminário sobre sua obra, na Itália, e ainda o discurso apresentado por ele quando recebeu o Prêmio Nobel, em Estocolmo.

"'Da Estátua à Pedra' foi uma reflexão impressionante, de grande profundidade", diz Pilar del Río. "Nela, ele confessou que até o lançamento de 'O Evangelho Segundo Jesus Cristo' (1991) ele estava muito obcecado por descrever as estátuas, narrar todas as dobras do mundo, todas as criações, todas as luzes." E então Saramago diz que resolve ir em direção à pedra, com a qual se faz a estátua.

A transformação do escritor, que depois publicaria "O Ensaio Sobre a Cegueira" (1995), "Todos os Nomes" (1997) e assim por diante, tem relação, segundo Del Río, com a mudança para Lanzarote, ilha espanhola "coberta de crateras".

"Esta viagem à pedra culmina com 'Caim', de 2009, que já nem me parece pedra, é o coração da pedra", diz ela.

"Caim" foi o último livro concluído por Saramago, mas o escritor vinha trabalhando em outro romance, que, inacabado, será publicado no ano que vem.

O livro se chamará "Alabardas, Alabardas! Espingardas, Espingardas!", título que alude à obra do dramaturgo português do século 16 Gil Vicente.

"São alguns capítulos, mas eles têm unidade. Saramago não deixou de escrever porque morreu. Foi meses antes. Sabia que tinha esgotado uma via. E a ação tinha de passar para outro plano, que exigia pesquisas pesadas. Ele estava cansado. Foi deixando, deixando até que chegou a morte", conta ela.

Danilo Verpa/Folhapress
Pilar del Río, viúva de Saramago, que está no Brasil para a leitura de trechos de
Pilar del Río, viúva de Saramago, que está no Brasil para a leitura de trechos de "Memorial do Convento" e "Levantado do Chão"

Pilar del Río diz que não haverá outros romances inéditos "surpresa". Segundo ela, serão publicados ainda o esboço de uma novela e uma peça, ainda desconhecidos, mas que terão interesse só para estudiosos.

Além destes, a Fundação José Saramago, em Lisboa, lançará duas séries de projetos relacionados com o escritor. Uma linha incluirá conferências dele, como "Democracia e Universidade" (que sairá também neste mês no Brasil pela editora da UFPA) e "O Lado Oculto da Lua", palestra feita em 2007 em Cartagena das Índias, na Colômbia. Nela, Saramago fala que "há milhões e milhões de pessoas que nunca estiveram vinculadas ao poder, que estão do lado oculto da Lua". Ele se refere aos indígenas sul-americanos.

A segunda linha da fundação é de livros sobre Saramago. O próximo lançamento será a tese de doutorado espanhola "Erotismo e Sensualidade na Obra de Saramago", que sai em Novembro. A editora da instituição criada por Saramago lançará ainda obras de escritores afeitos a ele, mas que não estão sendo publicados por editoras comerciais, caso do português José Rodrigues Miguéis (1901-1980).

DICIONÁRIO SARAMAGUIANO

O maior projeto em torno de Saramago, porém, deve demorar ainda um par de anos. Pilar del Río conta que está sendo preparado um "Dicionário Saramaguiano", coordenado pelo crítico português Carlos Reis.

E a sra. não vai escrever...

Pilar del Río interrompe o repórter: "Já sei, já sei, você vai me perguntar se não vou escrever sobre Saramago. A resposta é não", brinca ela.

"Só poderia escrever algo se fosse nas três ou quatro horas diárias em que durmo", completa, antes de recitar as próximas paradas de suas viagens: Buenos Aires, Montevidéu, volta ao Brasil para lançar "Da Estátua à Pedra" em Belém, e logo Portugal, onde acompanhará um espetáculo inspirado no romance "A Viagem do Elefante", que será feito com um elefante mecânico de sete metros de altura e cem atores.

"Mas o mais importante é a leitura de hoje", completa Del Río. "Não digo como interessada, mas como jornalista: eu não perderia."

HOMENAGEM A SARAMAGO
QUANDO hoje (13/8), às 19h30
ONDE Teatro Anchieta, Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 0/xx/11/3234-3000).
QUANTO grátis (retirar ingresos uma hora antes)


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