Folha de S. Paulo


'Pavão Mysteriozo', canção da primeira versão de 'Saramandaia', foi desprezada no remake

O remake de "Saramandaia", novela de Dias Gomes exibida pela Globo em 1976, gerou uma crítica nas redes sociais desde a estreia, em junho: cadê a música do pavão?

Telespectadores mais atentos (e antigos) sentiram falta de "Pavão Mysteriozo", do músico cearense Ednardo, trilha da abertura da novela nos anos 1970 e que, na versão atual, virou só um tema do personagem João Gibão (Sergio Guizé).

Lançada em 1974, no disco de mesmo nome, a canção da abertura foi o estouro da boiada na carreira de José Ednardo Soares Costa Sousa.

Ele estreara no ano anterior com os também cearenses Rodger e Teti no álbum "Meu Corpo, Minha Embalagem, Tudo Gasto na Viagem --O Pessoal do Ceará".

"Eu soube que a canção tinha sido incluída na trilha da novela vendo TV. Foi um susto, mas foi maravilhoso", contou Ednardo, 68, à Folha.

Ali também começou algo maior: a consolidação nacional de uma cena musical cearense que desde o final dos anos 1960 havia migrado para o eixo Rio-São Paulo.

Além de Ednardo, Rodger e Teti, Fagner, Belchior e Amelinha vieram de mala e cuia. Na trincheira dos compositores estavam Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, Augusto Pontes e Fausto Nilo.

Editoria de Arte/Folhapress

"Elis [Regina] já havia gravado [em 1972] 'Mucuripe', e 'Hora do 'Almoço', do Belchior, começava a ganhar destaque, mas 'Pavão' foi a primeira dessa leva a ser massificada", disse Fagner.

Em 1973, ele lançara "Manera Fru-Fru, Manera", que tinha "Mucuripe", parceria com Belchior. Esse último saiu no ano seguinte com o disco "Mote e Glosa", onde estava "À Palo Seco". Em 1975, Amelinha já excursionava como cantora com Toquinho e Vinicius de Moraes.

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"O ajuntamento dessa turma toda começou na faculdade de arquitetura do Ceará e depois migrou para o Bar do Anísio, que ficava na orla de Fortaleza, na época, uma vila de pescadores. Era um tempo de completa efervescência cultural", conta Nilo.

Parte do dinheiro do diretório estudantil, dirigido pelo compositor e arquiteto, era destinada a coisas alheias à arquitetura e ao urbanismo.

"Comprávamos discos, revistas e jornais, com acesso livre para todos. Sabíamos dos shows no teatro Opinião e dos poemas de Ferreira Gullar pelo "Jornal do Brasil". Aquilo tudo nos incendiava."

Entre as compras estavam discos de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, cantorias de viola, bolachões de Bob Dylan e dos Beatles, romances franceses e livros de filosofia.

CENSURA

O ambiente estudantil afinou também a ideologia do grupo, mais à esquerda.

Pouco comentado até por seu criador, "Pavão Mysteriozo" tinha um toque político nas entrelinhas --ou nem tanto, basta ouvir hoje versos como "me poupa do vexame/ de morrer tão moço/ muita coisa ainda/ quero olhar".

"Era uma canção de protesto, política, sobre a construção de um mecanismo que nos faria voar, fugir do que vivíamos. A censura não percebeu", disse Ednardo.

A base da letra era o romance de cordel "O Romance do Pavão Misterioso", conhecido no Nordeste a partir dos anos 1920.

"Eu assistia à novela e ouvia a música na TV que havia na praça de Catolé do Rocha [PB]", lembrou o cantor paraibano Chico César.

"Nos víamos representados em algo de grande circulação, que eram a novela e a música. Aquela realidade da qual tratava a canção, de sol abrasador, de um mundo fantástico entremeado à realidade, todo nordestino já conhecia desde a infância."

Passados 40 anos, o legado do pavão vingou.

Os nomes mais vistosos daquela cena como Fagner, Ednardo, Belchior, Fausto Nilo e Amelinha ainda estão na estrada.

Ouça podcast sobre 'Pavão Mysteriozo'


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