Folha de S. Paulo


Crítica: "Hanói" consegue tratar com leveza fragilidade da existência

Em "Hanói", seu sexto romance, a carioca Adriana Lisboa, 43, se impõe a espinhosa tarefa de tratar com leveza um tema complexo: a fragilidade da existência.

Lança-se a isso tendo como ponto de partida a lembrança cotidiana da transitoriedade de tudo --a sombra da morte--, recortada sob o pano de fundo do desenraizamento pátrio.

Assim, o livro põe em cena, na Chicago contemporânea, David, 32 anos --filho de um imigrante ilegal brasileiro com uma mexicana--, empregado de uma loja de material de construção e trompetista amador, que certo dia ouve o desalentador diagnóstico de um oncologista: sofre de gliobastoma multiforme, um tumor no cérebro; sua vida iria durar "meses a mais, meses a menos, dependendo disso ou daquilo".

Eduardo Anizelli/Folhapress
A escritora Adriana Lisboa, em imagem de 2011
A escritora Adriana Lisboa, em imagem de 2011

Mais tarde, ao entrar num mercado asiático, de propriedade de um ex-monge budista, ele conhece a caixa Alex, 22, cuja mãe nascera da relação entre uma vietnamita e um soldado americano que fora lutar na guerra que opôs seus países.

O que poderia desembocar em uma trama melodramática alinhavada pelo debate ligeiro sobre a questão dos imigrantes nos Estados Unidos resulta num romance em que a pretendida delicadeza se cumpre sem se converter em sinônimo de superficialidade.

O trunfo está na forma como a autora construiu o perfil psicológico de David, mais precisamente no modo como o fez encarar sua tragédia pessoal: "A única característica comum a todas as coisas, ele pensou, enquanto o embalo suave do metrô o jogava para a direita, para a esquerda, para a direita, para a esquerda, é que elas num determinando momento começam a existir e num momento deixam de existir".

Esse entendimento de David sobre o significado de estar no mundo, independentemente das origens, "exigiu" que a narrativa adotasse a leveza de que se falou no início, tornando indissociáveis aquilo que o romance quer dizer e a linguagem que opera para alcançar isso.

As recaídas de David só reforçam a estratégia: "Vestiu-se e saiu para a sua consulta. Tinha estado a ponto de desmarcar, mas havia agora uma esperança encalhada nele feito o esqueleto colossal de um navio, a esperança de que o diagnóstico estivesse mesmo errado".

Alex era esse navio --e ela acaba embarcando com ele em seu desapiedado inconformismo. Apesar disso, David resiste à ideia de levá-la consigo para Hanói, o imaginado destino de uma viagem que marcaria o seu afastamento definitivo da "manada'', como fazem os elefantes ao perceberem que o fim está próximo: "Ninguém morre acompanhado''.

Curiosamente, a própria Alex mencionara a cidade ao ser indagada por David --sem saber ainda o porquê da pergunta-- para onde iria, se pudesse.

Italo Calvino, um dos monumentos das letras italianas do século 20, escreveu que "duas vocações opostas se confrontam no campo da literatura: uma tende a fazer da linguagem um elemento sem peso, flutuando sobre as coisas como uma nuvem (...); a outra tende a comunicar peso à linguagem, dar-lhe espessura".

Calvino via a subtração de peso como uma virtude e não um defeito da ficção. "Hanói" é uma ilustração dessa possibilidade.

RINALDO GAMA é doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e autor de "O Guardador de Signos: Caeiro em Pessoa".

HANÓI
AUTOR Adriana Lisboa
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 39,90 (240 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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