Folha de S. Paulo


Documentário choca ao reencenar crimes

Em "The Act of Killing", o novo e assustador documentário de Joshua Oppenheimer sobre massacres e a impunidade na Indonésia, um líder de esquadrão da morte chamado Anwar Congo demonstra como estrangulou centenas de pessoas com arame. Era mais rápido e fazia menos sujeira que espancá-las até a morte, explica para a câmera, antes de dançar o chá-chá-chá.

Exibido em vários festivais de cinema no ano passado, o documentário é repleto de momentos bizarros e perturbadores como esse. Assassinos se gabam e contam piadas sobre os atos que cometeram --que lhes valem aplausos num talk show da TV indonésia, elogios do governo no poder e a condenação de grupos de defesa dos direitos humanos, que querem vê-los levados à Justiça.

Mas o filme de Oppenheimer, que tem Werner Herzog e Errol Morris como produtores-executivos e foi feito por uma equipe em boa parte indonésia, também vem causando polêmica por seu formato pouco ortodoxo. A reconstrução de fatos sempre provoca opiniões contrárias no mundo documental, mas Oppenheimer levou essa discussão para um novo nível ao incentivar os perpetradores de violações dos direitos humanos a reencenar seus crimes no filme, para uma plateia global.

"Aqui vemos seres humanos como nós gabando-se de atrocidades que deveriam ser inimagináveis", disse Oppenheimer, 38. "As perguntas são: 'Por que estão fazendo isso? Para quem estão fazendo? O que isso significa para eles? Como eles querem ser vistos? Como eles próprios se enxergam?'. Esse método foi uma maneira de responder a essas perguntas."

Os fatos tratados no filme são pouco conhecidos no Ocidente: o massacre de até 1 milhão de pessoas na Indonésia após a tomada do poder pelos militares no país, em 1965. As vítimas foram rotuladas de comunistas, mas incluíram sindicalistas, intelectuais e indonésios de etnia chinesa. Grupos paramilitares fizeram a matança a pedido do Exército indonésio e com o apoio dos Estados Unidos e seus aliados, receosos de que a Indonésia caísse nas mãos dos comunistas, como o Vietnã.

Oppenheimer centra sua atenção em Medan, uma grande cidade no norte de Sumatra. Ali, um grupo cometeu boa parte das mortes inspirados, em parte, pelos filmes que admiravam.

Anwar Congo conta que assistiu a um filme com Elvis Presley, depois atravessou a rua, "ainda no clima do filme", e foi para a cobertura do prédio onde estrangularia suas vítimas.

Oppenheimer declarou que a decisão de reencenar os crimes foi tomada depois de ele ter entrevistado cerca de 40 integrantes de esquadrões da morte. Eles tinham uma teatralidade natural, comentou, e isso o levou a se oferecer para filmar reconstruções dos crimes. Os assassinos não receberam cachê, disse o diretor, mas "uma modesta ajuda de custos diária".

"Minutos depois de sermos apresentados, eles me contavam histórias horripilantes, muitas vezes em tom de quem está se vangloriando", recorda. "Diziam, por exemplo: 'Que tal irmos ao lugar onde eu matei pessoas, e eu lhe mostrarei como fiz?'. Depois, muitas vezes, se lamentavam: 'Eu deveria ter trazido um machete para mostrar melhor' ou 'Eu deveria ter trazido amigos para representar o papel das vítimas, teria sido mais bacana assim'."

Os membros do esquadrão da morte moldaram suas performances segundo seus gêneros cinematográficos favoritos. Uma cena foi representada como um western, com Congo e o ator comicamente rechonchudo que contracenava com ele usando chapéus de caubói. Outros foram feitos como filmes noir ou de horror.

"Você assiste a isso e sabe que, de certo modo, é real", comentou Werner Herzog. "Mas não consegue acreditar que a realidade possa assumir formas tão loucas e bizarras."

Em Berlim, uma pessoa na plateia sugeriu que o que Oppenheimer fez foi "como fazer oficiais da SS reencenarem o Holocausto". O diretor respondeu: "Não é, porque os nazistas não estão mais no poder" --os membros do esquadrão da morte indonésio continuam a exercer cargos públicos e a desfrutar da proteção do Estado.

Alguns questionam se o filme é de fato um documentário. Oppenheimer propõe uma visão nuançada. Ele traça uma distinção entre o estilo observante da primeira metade do filme e o que vem depois das reconstruções.

"Acho que [a partir disso] o filme quase deixa de ser documentário. Vira uma espécie de ária alucinatória, uma espécie de sonho febril." Nesse ponto, disse o diretor, o filme "transcende o registro documental".


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