Folha de S. Paulo


Obras de arte com cadáveres detonam debate ético sobre uso do corpo para fins estéticos

"Vai causar a maior comoção", escreveu Travis Runnels. "Quando despertamos essas emoções nas pessoas, surge a maior polêmica. Mas é isso que queremos, não é?"

Essa mensagem ao artista dinamarquês Martin Martensen-Larsen foi escrita num presídio de segurança máxima no Texas, um dos Estados norte-americanos que ainda mantêm a pena de morte.

Uso de mortos na arte tem raiz no século 16

Seu autor, condenado por roubo e assassinato, deve ser executado por injeção letal e comenta, no texto, a reação à obra de arte que já causa escândalo antes de sua criação.

Runnels é uma peça-chave do trabalho de Martensen-Larsen. No que chama de trilogia da morte, o artista já expôs uma ampulheta com cinzas de um corpo cremado, vendeu ingressos para a execução do detento --cinco pessoas já pagaram R$ 27 mil no total para ver o espetáculo ainda sem data-- e planeja agora o ato final da obra.

Ele quer expor o corpo de Runnels como se fosse uma escultura, na mesma posição de Abraham Lincoln em sua famosa estátua de Washington, só que pintado de ouro.

"Essa é minha forma de mostrar o valor de um condenado. Uma pessoa no corredor da morte se torna muito valiosa para o Estado, já que essas execuções sublinham o valor da vida na América", diz Martensen-Larsen, em entrevista à Folha. "Não quero incitar o ódio dos americanos, só levantar questões."

Mas seu projeto também é ameaçado por questões legais de todo tipo. Mesmo dizendo que duas galerias, uma no Texas e outra em Washington, já toparam expor seu trabalho, Martensen-Larsen discute a letra miúda legal com advogados e especialistas.

"Esse corpo já terá sido destruído pelo Estado", diz o artista. "Se eu mostrar isso, não mostro nada além do que o Estado já fez com a pessoa."

Numa correspondência que já dura três anos, Runnels dá total liberdade ao artista para fazer o que quiser com seu corpo e pede que o dinheiro pago por aqueles que verão sua execução seja doado a um asilo de animais.

Mesmo não havendo regras sobre a legalidade da exposição de cadáveres como arte, a ideia do artista dinamarquês esbarra numa série de questões éticas.

ESPETÁCULO DA MORTE

"Não é proibido fazer esse tipo de obra, mas isso levanta um debate ético", diz Paolo Zanotto, especialista em bioética da USP. "Da mesma forma que existe o respeito pela pessoa viva, o respeito ao cadáver é importante."

Especialistas também questionam se um condenado à morte teria juízo claro para decidir doar seu corpo.

"Fico me imaginando no corredor da morte e não acho que teria o equilíbrio para isso", diz Fabio Bessa Lima, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. "Não sei se o condenado pode autorizar que se faça do corpo dele uma obra de arte. Tenho resistência a usar a morte e a execução como um espetáculo."

Menos espetacular, outro projeto do artista americano John Baldessari também travou no limbo jurídico desde que foi concebido em 1970.

Baldessari queria expor o corpo de uma pessoa na mesma posição do Cristo morto retratado por Andrea Mantegna. Mas a cena só seria vista pelo buraco de uma fechadura, para que o espectador tivesse a mesma perspectiva do quadro do renascentista italiano -ou seja, seu contato com o cadáver seria mínimo.

No texto em que explica o trabalho, o próprio autor já tacha de "possivelmente impossível" sua obra, mas nos últimos anos o curador suíço Hans Ulrich Obrist vem tentando tirar a peça do papel.

"Seria uma natureza-morta literal na galeria, só que alguém teria de concordar com isso tudo antes de morrer, o que torna a ideia quase impossível", diz Ulrich Obrist. "Mas só a correspondência com especialistas em torno desse trabalho é fascinante. É quase uma conversa filosófica sobre a vida e a morte."

Sem um corpo para exibir, Ulrich Obrist e Baldessari acabaram expondo essas cartas trocadas com médicos, psicólogos e possíveis voluntários em vias de morrer nas três versões que já fizeram dessa mostra, a mais recente no início do ano em Sydney.

Pollyanna Clayton-Stamm, produtora da mostra australiana, lembra a estranheza de sair à caça de gente que sabia que ia morrer e estivesse disposta a doar o corpo. "Era mesmo um jogo de espera. Sei que parece brutal."

Brutal é também a forma como o médico Paolo Zanotto define essas duas ideias artísticas. "A indústria cultural enfia pessoas destroçadas, enterradas vivas, explodidas na casa das pessoas todo dia. Só não matam gente de verdade porque gastariam muito com advogados", provoca. "Não sei se isso é mais ou menos brutal que um 'Dexter'", completa, fazendo referência ao serial killer que é herói de uma série de TV popular.


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