Folha de S. Paulo


Opinião: Livros que são paixão de jovens são os que mais têm memória vilipendiada

A medida da rejeição de um livro amado na juventude é a mesma desse amor, só que ao contrário. Nós, que amávamos tanto "O Jogo da Amarelinha", hoje sabemos disso. Livros que despertam paixão no leitor imberbe são aqueles que mais têm sua memória vilipendiada.

Os prelúdios do fim são idênticos aos do processo amoroso: aquela pálpebra desmaiada e a perninha torta que antes simbolizavam o cúmulo intransferível da beleza de repente passam a ser meros defeitos.

Clássico do argentino Julio Cortázar é relançado aos 50

O romance de Julio Cortázar reuniu três tipos de romances em um só: o romance existencialista francês (rapazes de sobretudos negros esvoaçantes sobre as pontes do Sena), também compreensível como "romance sobre Paris" (é todo um gênero literário, inaugurado por Baudelaire); romance dentro do romance (em meio à transa de Oliveira e Maga acontece a caça a um escritor desparecido, Morelli); e o romance de latino-americano exilado, cuja escola inaugurou.

David Fernández /Efe
Exemplar da primeira edição do livro, cujo título original é 'Rayuela', é exibido em mostra
Exemplar da primeira edição do livro, cujo título original é 'Rayuela', é exibido em mostra

Esses romances são reunidos sob forma lúdica e experimental, que em seu momento correspondeu àqueles símbolos personalíssimos ali de cima (o olhinho caído, o coxear etc) e atualmente representam rugas e pés-de-galinha: a prova inconteste de que o livro envelheceu mal.

"O melhor Cortázar é um Borges ruim", afirmou o escritor César Aira, abrindo a porta para que outros rejeitassem publicamente sua primeira namorada, a Maga. Quanta deselegância. Além de ressaltar que "O Jogo da Amarelinha" é o pior de Cortázar (o melhor seriam os contos), Aira também disse que o carinhoso ogro belga serve apenas aos "adolescentes que querem ser escritores".

Sem dúvida, esse caráter iniciático ingressa o cinquentão ao restrito clube de livros da puberdade escritos por Boris Vian, J.D. Salinger, Jack Kerouac, Clarice Lispector, Fernando Sabino etc, servindo de base ao caçula da turma: Roberto Bolaño nunca escondeu sua admiração por "O Jogo da Amarelinha", e "Os Detetives Selvagens" --um romance experimental sobre latino-americanos exilados que esconde um romance sobre a caça a um escritor desaparecido-- a seu modo atesta a sobrevivência dos supostos erros de Cortázar, sua fé imóvel na contribuição inteligente e sensível do leitor para a conclusão do livro, na contribuição milionária de todos os erros.

JOCA REINERS TERRON é autor de 'Do Fundo do Poço se Vê a Lua' (Companhia das Letras), entre outros.


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