Folha de S. Paulo


Crítica: Realismo mágico de Bradbury tem lisergia e prosa sensorial

Ray Bradbury (1920-2012) criou uma espécie de realismo mágico ambientado em cidadezinhas do interior dos EUA, como a fictícia Green Town, onde transcorre "Licor de Dente-de-Leão" ("Dandelion Wine", 1957).

Há casas de madeira, a escola, a igreja, o cinema, a lanchonete, os pomares, os "carnivals" (mistura de circo ambulante, parque de diversões e museu de espantos).

"Licor de Dente-de-Leão" conta o verão de 1928, vivido pelo garoto Douglas Spaulding. O verão ensolarado pelo qual os meninos esperam o ano todo, o verão das férias, cheio de sabores e perfumes, cuja "madeleine" proustiana é o licor artesanal do título.

O livro é uma sucessão de episódios independentes entre si, cada qual funcionando como um conto. Alguns são extraordinários: a morte da bisavó, a invenção da máquina da felicidade, o namoro entre um rapaz e uma mulher de 95 anos, a mulher à noite fugindo de um assassino, o furto da feiticeira do tarô.

Como em toda história de Bradbury, os eventuais excessos de sentimentalismo são compensados por uma veia dark, por uma aura de mistério, por uma tendência ao grotesco aterrorizante.

Mesmo no verão paradisíaco de Green Town, surge a figura do Solitário, um serial killer que ataca mulheres.

A tradução de Ryta Vinagre tem muitos acertos e muitos erros, na razão direta da exuberância do original.

A prosa de Bradbury é notoriamente difícil de traduzir, pela riqueza vocabular, abundância de referências culturais específicas sem equivalente em português, pelo inesperado de suas metáforas e descrições.

Parte da magia de seu estilo vem de um jorro de ritmos e sonoridades que, vertidos para outra língua, perdem a função encantatória e estrutural que tinham.

Este livro é um dos que consagraram essa prosa sensorial, sensual, cheia de imagens vívidas surpreendentes, com ênfase em cores, texturas, num contato quase lisérgico com o mundo.

Alguns críticos já apontaram esses livros "interioranos" de Bradbury como uma espécie de realismo mágico equivalente às histórias de Gabriel García Márquez sobre Macondo.

Histórias de textura espessamente realista, mas ampliadas emocionalmente pela memória afetiva e em virtude disto indo até os limites do insólito, do fantástico.

Em outras obras (como "Algo Sinistro Vem por Aí") ele explora um lado mais ameaçador desse universo.

BRAULIO TAVARES é escritor e compositor. Publica no blog Mundo Fantasmo (mundofantasmo.blogspot.com).

LICOR DE DENTE-DE-LEÃO
AUTOR Ray Bradbury
TRADUÇÃO Ryta Vinagre
EDITORA Bertrand Brasil
QUANTO R$ 34 (266 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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