Folha de S. Paulo


Bethânia e 'dona Cleo' emocionam Paraty com versos de Pessoa

Uma pequena vaia antecedeu a mesa mais esperada desta Flip, na qual Maria Bethania e a professora emérita da UFRJ e da PUC-Rio Cleonice Berardinelli recitariam poemas de Fernando Pessoa, na noite de sexta-feira (5). Às 19h30, horário previsto para o início da mesa, os portões ainda nem estavam abertos.

Mas às 19h50, quando a Tenda dos Autores já estava superlotada, inclusive com gente de pé ao fundo do auditório, ninguém mais guardava mágoa. Cleonice, 96, a mais velha convidada que já pôs os pés na Festa Literária Internacional de Paraty, subiu ao palco com ajuda do mediador Julio Diniz e foi aplaudida de pé por vários minutos antes de começar a falar.

"Meus amigos da Flip terão agora diante dos olhos duas mulheres unidas por paixões complementares e ao mesmo tempo paralelas que norteiam suas vidas, a música sobretudo para a mais jovem, a poesia, principalmente, para a muito mais velha", disse ela.

Contou que Bethânia, de quem é amiga de longa data, declarara que caberia a ela, conhecida como dona Cleo, decidir os poemas que seriam lidos na Flip. "Concordamos que era preciso abarcar a obra de Pessoa que contivesse o poeta e os poetas que estivessem à sua volta".

Mas, feita a seleção, dona Cleo descobriu que a cantora resolveu incluir um longo poema de Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta português, logo no começo.

"Era um poema que considero um dos mais belos de Álvaro de Campos, mas que eu não incluíra porque o achava longo. O temor de que ultrapassasse o tempo me tolheu o primeiro impulso", contou, referindo-se a "Dois Excertos de Odes", que abriria uma longa seleção de poemas dos três principais heterônimos de Fernando Pessoa, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.

Dona Cleo e Bethânia se alternaram em versos de poemas como "Abdicação", "O Infante", "O Guardador de Rebanhos", arrancando aplausos entusiasmados e assobios a cada vez que recitavam juntas um verso, ou que faziam alguma brincadeira na leitura, como em "Todas as Cartas de Amor São Ridículas", em que cabia a dona Cleo todos os "ridículos" citados ao longo do poema.

A curadoria de poemas capitaneada por dona Cleo, uma das maiores especialistas em Fernando Pessoa no país, fez escolhas inteligentes, com sequências dialogando entre si --ao poema acima, por exemplo, seguiu-se, na mesma linha, "Poema em Linha Reta" (com versos como "Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo").

Após uma hora de leitura, que pareceu durar muito menos que isso, as duas responderam a uma infinidade de perguntas do público. Dona Cleo deitou e rolou com perguntas como "qual seu heterônimo preferido?" ("É como perguntar a uma mãe de que filho ela gosta mais") e "você gostaria de ser um heterônimo de Pessoa?" ("É incômodo ser Fernando Pessoa, a não ser pela imensa glória que ele atingiu. Heterônima não").

Bethânia disse que Pessoa é o "poeta de sua vida". "Ele sustenta minha respiração, segura o ritmo desassossegado do meu coração". Questionada pelo público, disse que não só adoraria como quer gravar com a amiga um CD recitando Pessoa, ao que dona Cleo complementou: "Responder a isso é mais fácil que [responder] as perguntas que vocês me fazem: claro que quero!"


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