Folha de S. Paulo


Coutinho elogia adaptações de Graciliano e diz que público só vê filme nacional 'por acaso'

"Eu nunca tenho nada a dizer, amanhã vai ser um problema." A reclamação do cineasta Eduardo Coutinho, 80, logo no início da entrevista coletiva que concedeu na tarde desta quinta (5), em Paraty, poderia ser um mal presságio para a mesa de que participará no sábado, às 12h, dentro da programação da Flip.

Mas basta a primeira pergunta para Coutinho mostrar que, na verdade, tem muito a dizer sobre cinema e o gênero de sua preferência, o documentário, no qual é considerado o maior especialista brasileiro --apesar de recusar o rótulo de "mestre", que lhe é costumeiramente aplicado.

"Não me levo muito a sério, isso é essencial. Como eu fiquei relativamente conhecido com 50 anos, levo isso tudo com muita ironia. Eu sou o melhor cineasta de mim mesmo, do meu quarteirão", disse o diretor de "Cabra Marcado para Morrer" (1984) e "Edifício Master" (2002).

Coutinho disse lidar com a crítica a seus filmes "de modo contraditório". "Quando a crítica é muito burra, eu nem ligo. Tem coisas que falam bem de um filme meu e eu acho que me enganei, porque para certas pessoas estarem elogiando, só pode ter sido erro meu. E há outras que indicam novas leituras possíveis, coisas que eu não tinha pensado."

A presença do cineasta na Flip será celebrada também com uma tiragem limitada (200 exemplares) do livro "O Olhar no Documentário", que reúne o ensaio que dá título a obra, em que Coutinho analisa sua profissão, e depoimentos de Ferreira Gullar, João Moreira Salles e Eduardo Escorel sobre o cineasta. A parte mais rara do livro, no entanto, é a que inclui sete das 40 críticas cinematográficas que o próprio Coutinho assinou para o "Jornal do Brasil", entre 1973 e 1974.

"Não significou nada na minha vida. Era uma época em que eu não sabia o que fazer na vida nem no cinema. Fui trabalhar no jornal graças ao Alberto Dines, que me deu o trabalho de revisor, e acabei escrevendo críticas", disse o diretor.

Nelas, diz ter falado mal de "O Sétimo Selo", "o pior filme do Bergman, com uma simbologia que pesa toneladas" e atacado duramente a nouvelle vague francesa. "Não gosto do surrealismo no cinema, acho que não dá certo. E odeio a vanguarda francesa. Acho que os dois filmes que o [Luis] Buñuel fez com o [Salvador] Dalí, 'Um Cão Andaluz' e 'A Idade do Ouro', valem mais do que toda a vanguarda francesa junta, pode pegar e jogar no lixo."

Ele afirmou ter se abstido de criticar filmes nacionais na época "por questões éticas", já que pretendia voltar ao meio. Mas não se furtou a comentar as adaptações de três obras do escritor homenageado desta Flip, Graciliano Ramos, que teve seus clássicos "São Bernardo", "Vidas secas" e "Memórias do Cárcere" levados às telas --o primeiro por Leon Hirszman e os dois últimos por Nelson Pereira dos Santos, que participa de mesa hoje à noite na festa literária.

"O Graciliano é um caso raro no cinema brasileiro, as três adaptações são maravilhosas, os diretores pegaram a potência da secura dele e trabalharam bem com isso. É o contrário de Machado de Assis, com quem nada dá certo."

Com um humor ranzinza, Coutinho falou ainda sobre a falta de audiência do cinema nacional, onde "todos os cinemas são em shoppings" e "o público só vê filme brasileiro por acaso". "Outro dia estava entrando no cinema para ver um filme nacional e o porteiro me falou: 'Olha, o filme é brasileiro, hein'."


Endereço da página:

Links no texto: