Folha de S. Paulo


Crítica: Personagem de Daudet ilustra manias de grandeza do francês

Tarascon é uma cidade no sul da França que, segundo o censo de 2005, conta com cerca de 13 mil habitantes. Tinha mais ou menos a mesma população em 1872, quando Alphonse Daudet publicou seu "Tartarin de Tarascon".

É uma novela curta e simpática, que a Cosac Naify publica em nova tradução de Carlito Azevedo. Pelo tipo das ilustrações (assinadas por Rafael Sica), pelo glossário e pelas notas de rodapé ótimas, intui-se que a editora aposta no público infantojuvenil.

Nunca se sabe o que pode acontecer junto a esse gênero de leitores, mas a história imaginada por Daudet é suficientemente simples, acidentada e irônica para que a escolha da editora se justifique.

Seu herói, ou anti-herói, o "intrépido" Tartarin, não ficaria mal no cinema se encarnado em Gérard Depardieu.

Obeso, comodista, fantasioso e fanfarrão, é uma mistura de Sancho e Dom Quixote, como não se cansa de explicar o autor. Mas segue também o modelo da Madame Bovary de Flaubert, um dos mestres de Alphonse Daudet.

Ou seja, na modorra da província, entope-se de leituras emocionantes e sonhos fabulosos. No caso de Tartarin, são as histórias de exploradores e viajantes que acendem a sua imaginação.

Ele se convence de ter participado de aventuras, caçadas e batalhas em lugares que nunca visitou. Menos do que um fenômeno mental, seu delírio é de ordem retórica; surge das falastrices a que se entrega em companhia dos pacatos habitantes de Tarascon.

A história se complica quando Tartarin vê-se forçado a realizar uma antiga bravata: caçar leões na África.

A chegada do herói ao porto de Marselha, e depois seu desembarque na Argélia, rendem a Daudet algumas das "páginas de bravura" estilísticas do livro --melhores, às vezes, quando lidas na tradução mais antiquada de Vergílio Godinho para o português de Portugal (Ed. Verbo).

Mais interessante que as aventuras de Tartarin, nessa altura do livro, é o tom com que Daudet descreve o artificialismo da vida colonial francesa em terras africanas.

PARÓDIA

De certo modo, a mania de grandeza, as ilusões de valentia que tomavam conta de Tartarin de Tarascon eram as da própria França --mas seu declínio como potência mundial demoraria ainda um bom tempo para se concretizar.

Sem dúvida, não era algo que Daudet pudesse prever conscientemente. O inconsciente do livro talvez seja, entretanto, o que tenha de melhor. O problema de "Tartarin de Tarascon", na verdade, está no excesso de controle.

O narrador parece saber exatamente o que quer demonstrar, e é o primeiro a comparar didaticamente Tartarin com Dom Quixote (e com Sancho Pança). Comenta-se a si mesmo e carrega na ironia, como se o leitor não pudesse perceber por si mesmo as fraquezas do personagem.

O efeito é que a história perde logo a graça --ainda que reste intacto o carinho de Daudet pelo seu personagem e pelo seu povo.

Como nos contos magistrais de "Cartas do Meu Moinho", Daudet se mostra um afetuoso retratista dos costumes e da psicologia popular do sul da França; eis o que se transmite, acima das esparrelas ingênuas do herói, aos leitores adultos de "Tartarin".

TARTARIN DE TARASCON
AUTOR Alphonse Daudet
EDITORA Cosac Naify
TRADUÇÃO Carlito Azevedo
QUANDO R$ 33 (160 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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