Folha de S. Paulo


Assistente de Lucian Freud revela bastidores do ateliê do artista em fotografias

Lucian Freud, o pintor que se consagrou com retratos hiper-realistas da imperfeição humana, construiu quase toda a sua obra numa casa no oeste de Londres, onde também morava.

Seus objetos costumam aparecer no fundo dos quadros e serviam de cenário para imagens tão fortes quando o retrato de Sue Tilley, uma fiscal do serviço social britânico, que ele retratou nua, em toda sua obesidade, naquele mesmo estúdio.

Eram sessões demoradas, fechadas para todo mundo. Menos para seu assistente. Nos últimos 20 anos, David Dawson preparou o ateliê do artista e fotografou tudo o que via. Flagrou momentos como uma sessão em que o artista David Hockney posou para Freud e esteve lá nas 20 sessões necessárias para fazer um retrato da rainha Elizabeth 2ª.

Algumas dessas imagens estão agora na mostra de Lucian Freud que o Masp abre hoje. Dawson, que dará uma palestra no museu nesta quinta (27) às 15h30, falou antes à Folha. Leia a seguir trechos da entrevista.

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Folha - Como você conheceu Lucian Freud e começou a trabalhar para ele?
David Dawson - Eu era aluno do Royal College of Art e um professor me perguntou se eu não queria trabalhar numa galeria. Entrei para essa galeria e acabei conhecendo o Lucian, nos demos muito bem logo de cara. Ele me ligava todos os dias de manhã, e assim foi dali em diante. Isso foi em 1990.

Ele já tinha a fama que tem hoje? Como era trabalhar para um artista tão conhecido?
Ele era muito conhecido na Inglaterra. Seu trabalho sempre foi muito elogiado. Também era conhecido em outras cidades europeias, mas nada como o que aconteceu depois. Dois ou três anos depois que comecei a trabalhar com ele, ele deixou sua galeria londrina e passou a ser representado pelo William Acquavella, de Nova York. Quando as galerias em Nova York começaram a mostrar sua obra, surgiu um interesse imenso. Era a época que ele estava pintando aqueles nus gigantescos. Todo mundo reagiu àquilo. Sua carreira decolou ali.

Nessa fase, Freud estava muito interessado no underground londrino. Como ele conheceu essa cena?
Ele estava pintando o retrato de um casal gay, o Cerith Wyn Evans e seu namorado. Eles eram muito amigos do Leigh Bowery. E o Leigh estava fazendo performances em Londres na época. O Lucian foi ver uma delas, depois pediu para pintar um retrato do Leigh. Mas não era normal isso, porque ele não costumava pintar pessoas que ele não conhecia muito bem.

Todas as telas eram pintadas a partir da observação ao vivo? Ele não terminava a partir de desenhos ou da memória?
Nunca. Tudo tinha que estar lá na hora em que ele estava pintando. Até os objetos e a posição das coisas no ateliê tinham de ficar iguais, nada podia sair do lugar. E os modelos também tinham de ficar o tempo todo. Ele não tocava na tela sem os modelos estarem ali diante dele.

Você herdou a casa e mantém tudo como está. Quais são seus planos para o espaço? Vai virar um museu?
Vou morar nessa casa. Ainda preciso fazer algumas reformas, mas assim que terminar, vou me mudar para lá. Ainda não toquei mesmo em nada, está tudo como ele deixou. Gosto muito desse lugar, porque passei ali os últimos 20 anos da minha vida.

Como era o temperamento do Lucian Freud? Ele era difícil?
Não achava ele difícil. Ele só colocava a pintura acima de tudo, então muita gente via isso como um ato egoísta, mas ele só queria fazer a melhor pintura possível. Ele nunca abriu mão disso. Eu entendo esse comportamento, nunca achei que fosse um problema. Ele teve a sorte de ter muitos bons amigos que ficaram ao lado dele a vida toda. Mas se estivesse pintando um retrato seu, ele exigia mesmo total atenção. Ninguém podia fazer outra coisa enquanto posava, não podia ler um livro, por exemplo. Ele exigia pontualidade e comprometimento. Era isso que ele admirava numa pessoa.

Até porque as sessões demoravam muito. Como ele fazia para produzir tanto se cada tela levava tanto tempo para ficar pronta?
Todas demoravam muito. Mas ele fazia quatro ou cinco pinturas ao mesmo tempo. E ia alternando entre sessões de dia e de noite, para dar um alívio aos modelos. Alguns então vinham três vezes por semana de manhã, outros quatro noites por semana. Uma tela grande demorava pelo menos um ano para ficar pronta, porque eram trabalhos mais ambiciosos.

Como era a rotina do ateliê? Você gostava de trabalhar para ele?
Era sempre muito quieto. Nunca tinha música, nem relógios nas paredes. O ateliê era muito fechado, ninguém podia entrar. Eu arrumava as telas e os cavaletes antes de cada sessão, mas quando ele começava, eu saía. Ele ficava sozinho com o modelo, mais ninguém. Era um espaço muito privado.

Gostava muito de tudo e gosto da obra dele. Eu também sou pintor, então entendia o que ele estava fazendo. Adorava ficar no ateliê, aquele era um espaço muito simpático. Estava sempre bagunçado, cheio de tinta, pincéis, telas. Eu gosto de tudo isso. E ele era uma boa companhia, prestava muita atenção nas pessoas e sempre era muito educado. Para mim, era emocionante estar ali e poder ver as telas enquanto ele pintava.

Você questionava algumas decisões? Conversava com ele sobre o processo de criação?
Demorou muito para eu ter coragem e comentar essas coisas. Mas ele comentava muito comigo. Quando nossa amizade já era mais forte, ele falava sobre tudo e até comentava as mudanças que ia fazer, dizia o que não gostava, o que gostava.

Ele retratou você em várias ocasiões. O que acha dos seus retratos?
É difícil olhar para mim mesmo numa tela. Eu tento não analisar muito. Mas sei que demorava muito.

Por que era tão trabalhoso o processo?
Ele sempre estava querendo fazer um retrato que tivesse vida própria, como se mostrasse um pouco da índole da pessoa. Ele tentava extrair uma mágica, aquilo que torna a vida completa. Todas as telas têm uma sensação enorme de presença humana e mostram uma gama inteira de emoções. Ele tinha um grande entendimento do que significa ser humano. Ele pintava mesmo muito devagar e ia construindo camadas ao longo dos meses. Quando estava posando, às vezes eu estava triste, às vezes feliz. Isso tudo junto acabava registrado no quadro. Esse tempo o ajudava a tornar o retrato mais especial. Sua obra era sobre estar vivo.

Você também acompanhou as mudanças de estilo na obra dele?
Eu conheço todos os quadros. Mas mesmo os que ele pintou antes de eu chegar, como "Jovem com Rosas", um retrato da primeira mulher dele, já mostram grande ambição. Essa é uma pintura extraordinária. Acho que ele cresceu, mas a qualidade do trabalho só aumentou e continuou altíssima até o final da vida dele. Alguns pintores têm 15 ou 20 anos de produção muito boa, mas ele começou muito forte e continuou assim até passar dos 80 anos de idade. O estilo mudou muito. "Jovem com Rosas", por exemplo, tem muito menos tinta, e você sente como ele pensou em cada pincelada, como olhou para cada detalhe por muito tempo já nesse quadro.

Ele também aprendeu a ser um artista contemporâneo com o Francis Bacon, aprendeu a pintar e a sentir coisas de outro jeito. Ele foi trocando pincéis, a tinta até chegar ao ponto em que cada pincelada tinha uma tensão, uma carga específica. Foi assim que ele começou a fazer as telas maiores, quando já estava com mais de 70 anos. Ele era muito cuidadoso. Era sempre arisco, ia de um lado para o outro do ateliê o tempo todo, mas tocava a tela com grande delicadeza.

Uma de suas fotografias mostra ele sem camisa, muito agitado, pintando um quadro.
Ele estava fazendo um retrato meu nesse dia. Era verão, estava muito calor lá fora e as luzes elétricas esquentavam ainda mais o ambiente.

Tem alguma fotografia que você gosta mais?
Talvez a do David Hockney. Eu lembro que tirei a foto bem na hora que o Lucian estava entrando pela porta. Essa virou a foto mais famosa. O Hockney estava posando para seu retrato, e a foto mostra a tela inacabada ao lado dele no ateliê. É o Hockney olhando para a câmera, posando, na hora em que o Lucian entrava na sala. Foi um momento brilhante.

Como foi acompanhar as sessões com a rainha Elizabeth 2ª?
Tenho memórias boas dessa ocasião. Lembro que ele fez o retrato no palácio de Saint James, para que a rainha pudesse ir com sua dama de companhia e seus guarda-costas. A dama de companhia ficava sentada num canto, e eu podia ficar lá só para cuidar da tela e do cavalete. Cada sessão durou duas horas, e foram umas 20 sessões. Eles conversavam muito, e quanto mais falavam, mais demorava. Mas, como era a rainha, ele precisava se apressar para terminar, não tinha o tempo todo.

Foi por isso que ele fez um retrato tão pequeno dela?
É muito pequeno, mas muito poderoso. Ele está hoje no castelo de Windsor, salta da parede. Mas, sim, ele foi bem realista. Ele sabia que teria um tempo limitado, então para se dedicar mais, ele escolheu uma tela menor, porque ele não podia pintar se a rainha não estivesse lá. Às vezes, para acelerar o processo, ele pedia para a dama de companhia sentar no lugar da rainha com a coroa, só para acertar os detalhes da coroa enquanto a rainha não podia posar.


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