Folha de S. Paulo


Livro 'O Último Copo' levanta o debate sobre a relação entre embriaguez e atividade literária

Entre a época em que F. Scott Fitzgerald via graça em ser "um dos mais notórios bêbados" de sua geração e o pungente relato pessoal que publicou na "Esquire", em 1936, com o autoexplicativo título "The Crack-Up" (o colapso), não foram nem dez anos.

No primeiro momento, o autor surfava na fama com obras como "O Grande Gatsby" (1925), cuja quinta adaptação para as telas estreou no Brasil neste mês. No segundo, já nem podia concluir um livro, vencido pelo alcoolismo.

Inspiração etílica é mais antiga que a Bíblia

A fama de bêbado grudou nele como praga. Fitzgerald figura em qualquer lista de autores alcoólatras, de obras leves, como o "Guia de Drinques" (Zahar, 2009), que dá a receita do gim com limão de que era adepto, a estudos alentados, caso do recente "O Último Copo" (Civilização Brasileira), de Daniel Lins.

Lins, brasileiro que passou boa parte da vida na França, conviveu por dez anos com o filósofo Gilles Deleuze (1925-1995), de quem foi aluno. Herdou do mestre, alcoólatra recuperado, o interesse por uma "teoria do álcool".

"Queria saber o que o autor que bebe pensa sobre a constituição do pensamento." Bebedor moderado, segundo diz, dedicou cinco anos a obras etílicas, como a de Fitzgerald e a da francesa Marguerite Duras (1914-1996).

Editoria de Arte/Editoria de Arte/Folhapress

Sobre Fitzgerald, o livro cita Deleuze, em texto de 1969: "O efeito de fuga [causado pelo alcoolismo] é, talvez, o que faz a maior força da obra de Fitzgerald, o que ele exprimiu o mais profundamente".

Duras, que bebia de seis a oito garrafas de vinho por dia, defendia que "a obra amadurece no álcool"."Quando um autor entra em pane de imaginação, há pouca chance de que se volte a Deus, que faça uma prece: ele abrirá uma garrafa", ela anotou, em 1993.

A ideia de Lins de criar uma teoria brasileira do álcool esbarrou numa constatação que o frustrou. O interesse de autores nacionais, como Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, sempre esteve mais restrito aos bares do que explicitado no papel.

O único escritor local a ganhar voz no livro é Lima Barreto (1881-1922), com o relato de "Diário do Hospício" sobre como o álcool lhe rendeu "sinais de loucura".

BRASILEIROS

Fora do livro, Ruy Castro é dos brasileiros que mais tratam da relação entre bebida e literatura. Parou de beber há 25 anos, experiência descrita neste ano na Folha -o texto foi ampliado para o recente "Morrer de Prazer" (Foz).

Castro discorre com gosto sobre a vida de bebuns literários, mas rejeita a ideia de que o álcool lhes tenha ajudado. "Se eram bons bebendo, seriam melhores sem beber."

O autor lançou seu primeiro livro, "Chega de Saudade", em 1990, já abstêmio. Antes disso, chegou a ver uma reportagem sua para a "Playboy", em 1988, toda reescrita pelo editor. "Parei aos 44 e meio do segundo tempo. Era inevitável a dissolução mental."

Para Reinaldo Moraes -cujo romance "Pornopopeia" foi eleito, no blog do colunista da Folha Xico Sá, um dos "dez livros mais bêbados do mundo"-, umas doses não caem mal como inspiração.

"Para o início do trabalho criativo, é legal afrouxar as amarras, deixar o fluxo de consciência mais solto. Difícil é conciliar a habilidade psicomotora", pondera o autor, que considera saudável sua relação com a bebida.

Xico Sá chegou a rascunhar, sob efeito de álcool, a novela "Caballeros Solitários Rumo ao Sol Poente" e o livro "Tripa de Cadela & Outras Fábulas Bêbadas", dois títulos que vê como "brincadeiras". Concluiu que o álcool rende belos rascunhos, não necessariamente grandes obras.

"Na fase inicial, o álcool pode deixar a pessoa mais criativa", diz Arthur Guerra, presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool. Mas o efeito, para ele, não justifica o uso. "Vou sempre dizer que beber demais não vale a pena."

O prejuízo começa quando o escritor passa a usar a bebida como muleta. "Se bebe para fugir da angústia da criação, vira dependente. Daí cai o rendimento, ele se angustia mais, bebe mais ainda."

No fim, diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unifesp, o processo deteriora a produção criativa. "O álcool corrói funções cognitivas como memória e concentração."

Bons escritores podem continuar afiados em estágios avançados de dependência do álcool, diz o psiquiatra -mas isso tem a ver com o talento, não com a bebida.

Autor do recente "Ensaios sobre a Embriaguez" (Record), Vicente Brito Pereira enfrentou o alcoolismo por 30 anos. Sem beber há quase dez, escreveu para tentar entender a si e aos seus pares.

Pereira não se detém na relação entre bebida e literatura nos ensaios. À Folha, arrisca uma teoria: "O escritor não busca no álcool a manifestação artística, e sim a onipotência da embriaguez."

Visto assim, o escritor é como qualquer um que goste de tomar uns tragos. Com a diferença de que suas bebedeiras são mais propensas à fama.


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