Folha de S. Paulo


Lucrecia Martel fará coprodução com o Brasil e se diz inspirada por Glauber em novo filme

No café de um hotel em Curitiba, a cineasta argentina Lucrecia Martel acende um charuto e pede uma cachaça antes da entrevista. Essa é a mulher durona incensada como a mais sensível entre os diretores da nova geração.

Desde que lançou, em 2001, "O Pântano", que mostra da forma mais crua os dramas de uma família de classe média em férias, Martel despontou no circuito global com seus enquadramentos insólitos, roteiros ultraprecisos e um olhar agudo sobre a vida burguesa.

Depois vieram "A Menina Santa", sobre uma adolescente às voltas com o assédio sexual de um homem mais velho hospedado no hotel onde mora, e "A Mulher Sem Cabeça", a história de uma personagem atordoada pela incerteza de ter atropelado uma criança na estrada.

Martel, que sempre escreveu e dirigiu os próprios filmes, agora fará a primeira adaptação de sua carreira, vertendo "Zama", livro do escritor argentino Antonio Di Benedetto para o cinema. É também seu primeiro projeto em coprodução com o Brasil.

Em Curitiba, onde participou do projeto Ficção Viva, dando uma oficina de roteiro, Martel falou à Folha. Leia a seguir trechos da conversa.

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Folha - Você sempre escreveu e dirigiu seus filmes, mas seu novo projeto "Zama", em coprodução com o Brasil, será uma adaptação. Como é fazer pela primeira vez um filme a partir de um texto que já existe?

Lucrecia Martel - Nunca pensei que me interessaria por adaptações. Mas há algo fascinante em trabalhar sobre a obra de outro. Isso obriga você a entrar num universo criado por outra pessoa, que não é o mundo real. Penso que as coisas que nos parecem muito perturbadoras ou comoventes nos deixam num estado de alteração que você deseja prolongar. Fazer um filme é como prolongar, neste caso, um estado de alteração que me provocou esse livro. Não é ser fiel ao livro, mas ser fiel a esse estado de alteração que o livro produziu.

"O Eternauta" também foi uma adaptação, no caso, de um gibi, mas soube que o projeto não foi adiante. Por que?

Não tive afinidade com os produtores. Era um filme de alto orçamento, e quando tanto dinheiro está investido é melhor que haja condições perfeitas de trabalho. A família que herdou e cedeu os direitos autorais havia posto no contrato a condição que tudo fosse gravado na Argentina e em espanhol, para evitar que a obra fosse levada para Hollywood. Trabalhamos um ano e meio, mas não houve entendimento. Nem leram o roteiro. Decidi sair do projeto quando vi que seria insuportável trabalhar com aquela equipe. Não quis prejudicar o filme.

Como é seu processo de escrita? Como pensa nos roteiros?

Sempre anoto coisas, mas isso não é o roteiro. São ideias, questões sobre os diálogos, os personagens, os sons, a imagem, as cores, as locações. São só ideias. É um processo que vira uma coleção sem objetivo claro. Quando faço meus próprios roteiros, vou juntando coisas e, num determinado momento, aparece uma ideia que me entusiasma.

Qual é a trama de "Zama"?

É um livro escrito no século 18 sobre um funcionário numa cidade muito decadente da colônia. Ele está esperando que chegue uma carta do rei para que ele seja transferido para outra cidade. A trama é tudo o que acontece enquanto essa carta não chega.

Onde e quando será filmado?

Será na Bolívia, perto de Santa Cruz del Oeste, numa série de cidadezinhas fundadas no fim do século 17 por jesuítas. Estão lá construções que vamos usar. Essa região é o Chaco. Também terá uma parte do norte da Argentina.

Que visão você tem do cinema feito hoje na Argentina e no Brasil? Tem algo do Brasil em seu novo filme?

Acredito que a história do cinema brasileiro é muito singular, com pessoas de criatividade tremenda. É onde surgiu o cinema novo. Pensando em "Zama", comecei a ver muitos filmes do Glauber Rocha, porque essa é uma época da América Latina muito emocionante. "Zama" não tem a ver com isso, mas esse cinema me conforta enquanto estou trabalhando em "Zama". Claro que os críticos brasileiros serão mais duros com o cinema brasileiro do que os argentinos. O público também cobra mais do seu próprio cinema do que dos outros, mas as produções são amplas demais para que se façam comparações.

Se você compara "Madame Satã" com "O Segredo de Seus Olhos", não faz sentido o que diz a crítica brasileira. "Madame Satã" fala muito mais da realidade do que "O Segredo de Seus Olhos", que é um filme muito mais de gênero. Mas não sei muito bem. Dizer essas coisas é simplificar demais. Na Argentina, o problema é que há muitos filmes que pensam falar de pequenos dramas, mas que na verdade não falam de nada.

Qual é o maior problema então do cinema latino-americano?

O maior problema do cinema latino é que todos os filmes são feitos por pessoas de classe média alta. A pobreza do nosso cinema é essa. Se outras classes chegassem ao cinema, teríamos mais variedade. Isso está mudando com sistemas alternativos de projeção e tecnologia. É possível trabalhar com orçamentos menores, mas ainda não vemos resultados que mudem essa tendência.

Em "A Menina Santa" e "A Mulher Sem Cabeça", você trabalhou com Pedro Almodóvar, que produziu os filmes. Como é sua relação com ele?

Ele gostou dos roteiros e meio que se diverte com o que eu filmo. Almodóvar nunca apoiaria cineastas que fazem coisas parecidas com as que ele faz. Isso nunca aconteceria. Um diretor, na verdade, vai atrás do que é diferente. É como se apaixonar, ninguém se apaixona por alguém igual. Ele se sentiu atraído por algo que não é igual.

Mas sou muito próxima de Almodóvar no aspecto da origem das produções. Ele também toma muitas referências da sua família. Isso é algo que me inspira muito. As anedotas familiares são uma fonte inesgotável de ideias para filmes. Quando ele fala da mãe dele me lembra muito a minha avó. Tudo que ele me diz me parece muito familiar. Conversamos muito, mas ele não se mete no que eu faço nem tenta mudar nada.

Você já descreveu seu modo de filmar como se olhasse para o mundo com uma câmera instalada debaixo d'água numa piscina, e as bordas da piscina seriam os limites do quadro. De onde vêm seus enquadramentos tão originais?

Não me acho tão original assim. Poderia inventar aqui alguma coisa para justificar esse estilo. Mas todos temos que lidar com as mesmas armadilhas, a educação que tivemos, a classe social em que habitamos. É isso que nos dá um sentido de tempo e espaço. Suas possibilidades econômicas é que moldam a forma de perceber o mundo. Alguém que veio da pobreza não se vê se deslocando muito pelo mundo, e seu horizonte temporal é outro. A pobreza e a riqueza geram distorções enormes nas percepções de espaço e tempo.

Li uma vez sobre um milionário que se à noite tivesse vontade de comer algo específico de um restaurante em Paris, ia ao aeroporto, pegava seu jatinho e viajava para lá. Agora quando nós temos fome à noite, vamos até a esquina tentar achar um lugar aberto. Para esse homem extremamente rico, o restaurante de Roma ou Paris está tão perto da sua casa quanto a esquina. Todas essas coisas geram uma percepção da realidade e por isso temos de ser conscientes dessas condições para poder ter um olhar alternativo sobre a realidade. Se você nunca sai do shopping center, vai pensar que todos vivem com seus cartões de crédito fazendo compras. É muito mais importante combater os limites ideológicos da burguesia do que lutar contra a pobreza, porque isso permite pensar outro sistema político que não seja tão corrupto.

Mas como essas condições sociais e econômicas se manifestam no cinema? Na forma que tomam seus filmes?

O cinema exige desestabilizar a percepção. As grandes estruturas dramáticas que os gêneros usam, como a comédia romântica, estão tão impregnadas de ideias morais, sobre o corpo, o amor, a propriedade privada e até o que significa chorar, que um cineasta, mesmo sendo da mesma classe média burguesa, tem que observar isso e propor algo que permita romper certos códigos, vislumbrar outra realidade. Há muitos filmes que mostram mundos homogêneos de riqueza sem contrastes ou contradições, em que triunfam a família e valores hiperconservadores.

Muito do seu olhar também é moldado pela arquitetura. Seus enquadramentos parecem obedecer a lógica dos espaços construídos de forma bastante rígida. O que pensa da arquitetura?

Quando me perguntam como começar a fazer cinema, mando estudar arquitetura. A arquitetura é um caminho extraordinário para o cinema. Um arquiteto enfrenta um relato arquitetônico já armado, que é a cidade, onde há traços mais fortes e outros menores. Lidar com a distribuição das necessidades humanas em espaços construídos é um processo narrativo em si.

Em "A Mulher Sem Cabeça", você filmou sempre em casas do mesmo arquiteto.

Essa foi uma ideia muito original da diretora de arte. Eu tinha dito que não queria filmar nas casas tradicionais de Salta, que são casas coloniais. Essa é a arquitetura dominante ali, a arquitetura do gosto da classe dominante. Mas a ideia era filmar em casas de um arquiteto que não era da tradição dali, casas que agradam as pessoas mais progressistas. Gosto de pensar que essas casas poderiam abrigar pessoas capazes de ocultar um crime. É fácil imaginar um fazendeiro que assassina os camponeses. Mas a classe média progressista e assassina não é tão fácil de imaginar. Era um conceito arquitetônico que, com esse enquadramento, funcionava muito bem.

E como foi trabalhar dentro de um hotel em "A Menina Santa"?

Era fantástico aquele hotel. Era um espaço de férias, de prazer do corpo e também da saúde. Era algo entre um hotel e um hospital. Os hotéis antigos de termas têm essa dupla natureza. E a ideia de ambivalência era importante em "A Menina Santa", essa dificuldade de distinguir entre o bem e o mal.

Esse filme também carrega muitas ambiguidades sexuais. Críticos também já analisaram o modo pouco convencional que você trata a sexualidade. Que peso isso tem na sua obra?

Acredito que ninguém é convencional no sexo. O prazer é muito particular em cada pessoa. Só sinto que sou contra o abuso de poder em qualquer classe, que é algo repugnante e ao mesmo tempo muito frequente. Mas a ambiguidade obriga a pensar. Simplificar sempre acalma, enquanto a complexidade é entropia. É preciso manter a ambiguidade, a complexidade, porque isso nos mantém mais pensantes.

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite do projeto Ficção Viva.


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