Folha de S. Paulo


Kim Novak, atriz de clássicos como "Um Corpo que Cai", apresenta premiação em Cannes

Certa vez, em um lago em Eagle Point, Oregon, EUA, Kim Novak, sentada em um barco ao lado de um repórter, olhava para o que restou de sua casa, junto ao lago, onde viveu por muitos anos, até que um incêndio a destruiu.

Lembrava que foram queimadas anotações pessoais sobre "Um Corpo que Cai", de Alfred Hitchcock, "Férias de Amor", de Joshua Logan, e a autobiografia que ela, aos 67 anos, estava escrevendo.

Perdeu também seus cavalos, cães, lhamas e gansos canadenses. E, sobre a autobiografia, dizia que aquele fora um sinal de que sua história não deveria ser contada.

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Kim Novak e William Holden em
Kim Novak e William Holden em "Picnic"

O que haveria nessa autobiografia? Se contemplasse o dia de hoje, descreveria a premiação do 66º Festival de Cannes -evento do qual Novak é convidada de honra e no qual entregará um dos troféus da cerimônia.

Marilyn Pauline Novak nasceu em Chicago, Illinois, em 13 de fevereiro de 1933, há 80 anos, portanto. Seus pais eram professores, e ela detestava professores que viviam dizendo o que e quando fazer. No ginásio, trabalhou com moda para jovens numa loja de departamentos.

Gostava de desenhar, pintar. Durante uma folga do colégio, ela e duas amigas decidiram ir a Los Angeles e tentar uma vaga de figurante em um filme chamado "Um Romance em Paris", de Lloyd Bacon. Foi notada por um agente da Columbia, que a contratou em 1953.

Deram-lhe algumas lições sobre como atuar e a lançaram em "A Morte Espera no 322", de Richard Quine, filme policial em que contracenou com Fred MacMurray.

Foi quando surgiu o primeiro grande impasse em sua carreira. O chefe da Columbia era o poderoso Harry Cohn, famoso pelo brusco tratamento que dava a seus funcionários. E ele queria que Marilyn Pauline Novak passasse a chamar-se Kit Marlowe.

Ela aceitou retirar o Marilyn para que não a confundissem com Monroe, mas bateu o pé contra o Marlowe. E emplacou o Kim.

Vieram então "Abaixo o Divórcio", com Jack Lemmon e Judy Holliday, "No Mau Caminho", de Phil Karlson, e "O Homem do Braço de Ouro", de Otto Preminger, com Frank Sinatra e Eleanor Parker -Novak teve um romance com Sinatra na época. Todos em 1955, ano em que recebeu o Globo de Ouro como "a mais promissora novidade".

Também em 1955 foi lançado "Férias de Amor", e aí pode-se dizer que Kim Novak realmente desabrochou.

Teve que enfrentar o diretor Joshua Logan sobre sua interpretação. Segundo ela, Madge, sua personagem, era, na visão dele, apenas uma garota bonita, e ela achou que Madge era como ela própria: queria ser mais do que isso.

O público a amou.

A Columbia respondeu com "Meus Dois Carinhos" (1957), colocando-a entre Frank Sinatra e Rita Hayworth, dirigidos por George Sidney.

Um exemplo típico daquilo que Novak detestava no estúdio: como diz, a Columbia a colocava em uma caixa e ia buscá-la quando precisava de um rostinho lindo.

Ela continua linda, mesmo agora, aos 80 anos.

"Eu resisti o quanto pude", disse, certa vez, em uma entrevista. "Sempre que podia, escapava para o camarim e atenuava a maquiagem forte que faziam em mim. Se a deixava, sentia que não sabia quem eu era."

Então, em 1958, foi lançado "Um Corpo que Cai", uma das obras-primas de Alfred Hitchcock, que teve sessão especial, com cópia restaurada, neste ano em Cannes.

No longa, Kim Novak é Madeleine e James Stewart é John Ferguson, um detetive aposentado que sofre de acrofobia, medo de altura. Madeleine tem uma crise de identidade, e seu marido tem medo de que esteja sendo possuída pelo espírito de sua bisavó, Carlotta Valdes, com tendências suicidas.

O marido pede a Ferguson que investigue sua mulher. Ele recusa, depois aceita. E, claro, apaixona-se por ela.

Hitchcock tinha fixação por loiras. Dizem que Tippi Hedren, em "Os Pássaros", sofreu com assédios dele.

Novak, no entanto, afirmou em mais de ocasião que nunca teve problemas com o diretor. "Ele nunca me fez propostas. Talvez eu não fosse o seu tipo. Eu o achava um diretor muito prestativo, assim como Otto Preminger e Richard Quine. Ele me deixou interpretar Judy [a versão morena de Madeleine] como a garota dos arredores de Chicago que eu realmente era."

O papel parece ter sido criado para Novak, que assumiu há alguns anos ser bipolar. Em entrevista a jornais americanos, disse: "Sou mais do que bipolar. Sou obsessivo-compulsiva. Tenho várias coisas, mas todas estão sob controle da medicina", diz.

A pintura, já disse, a tem ajudado a controlar esses episódios, e ela recomenda a todos que têm bipolaridade que façam atividades criativas.

Ela teve o diagnóstico de bipolaridade há muitos anos e já declarou que parte da síndrome a deixava "muito deprimida, não conseguia controlar as coisas. Eu não sabia o que estava errado e não tinha nenhuma medicação para tomar". Depois do diagnóstico, remédios "fizeram um mundo de diferença", disse.

E ela tirou vantagens da situação quando interpretou papéis de neurótica. "Teria sido grande se só me dessem papéis de neurótica. Mas só me pediam para fazer a garota feliz que vai à praia", declarou em entrevistas.

Voltando à arte: ela não é uma amadora, e certa vez ganhou uma bolsa de estudos para o Art Institute of Chicago, mas preferiu o cinema.

Seus quadros variam de retratos e paisagens ao impressionismo. Uma das mais belas obras é "Plantando os Pés na Baía de San Francisco".

Quando lhe perguntam se tem a ver com Madeleine, que mergulha na baía, ela sorri e responde: "Oh, não".

Ela pretende fazer uma exposição neste ano em prol de alguma organização que trate de doentes mentais.

Depois de "Um Corpo que Cai", Novak fez vários filmes e pelo menos uma série de TV. Decidiu deixar o cinema em 1991, quando filmava "Atração Proibida", de Mike Figgis.

"Eu sei que Figgis me acha uma vadia. O papel era fabuloso, profundo e, quando eu o interpretei do modo que achei evidente, ele me disse: 'Não estamos fazendo um filme de Kim Novak, apenas leia as linhas'", revelou.

"Usualmente, eu faria isso, mas, naquele caso, eu estava tão envolvida com o roteiro que assumo total responsabilidade por ter sido antiprofissional. Ele nunca deu atenção ao meu ponto de vista, apenas me ignorou."

Hoje, Novak vive na casa que reconstruiu em Eagle Point, Oregon, com seu marido, o veterinário Robert Malloy, 43 anos mais novo, cuidando de cavalos, cães e lhamas. Pinta quadros, desenha e faz esculturas.

Em 2010, sua agente anunciou que ela tinha um câncer no seio, mas estava sob tratamento. Não muito depois, foi declarada curada.

Se um dia você estiver perto da basílica Mission Dolores, em San Francisco, EUA, olhe em volta. Se avistar uma senhora elegante, de cabelos negros, rabiscando um papel, não hesite em se aproximar. Pode ser ela, disfarçada, esboçando paisagens.

Ela jura que já viu pessoas fazendo seu próprio percurso de "Um Corpo que Cai", agindo como Madeleine, e que tem esboços para provar.
Eu mesmo já estive lá. Mas, infelizmente, não encontrei Kim Novak.


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