Folha de S. Paulo


Crítica: Irônica e híbrida, obra japonesa escrita há mil anos ainda é moderna

"O Livro do Travesseiro", clássico da literatura japonesa, é um conjunto de narrativas, aforismos e anotações aleatórias, sem compromisso cronológico nem temático.

Foi escrito por Sei Shônagon entre os anos de 994 e 1001, durante o período Heian, em que o Japão cultivou intensamente as artes, principalmente a literatura.

A tradução para o português, empreendida por um competente grupo de professoras graduadas na USP, é um trabalho de fôlego iniciado em 2001 e que somente agora chega às livrarias.

Os mais de mil anos que separam o original da tradução explicam as dificuldades encontradas pelo grupo.

Reprodução
Representação de Sei Shônagon, de 'O Livro do Travesseiro
Representação de Sei Shônagon, de 'O Livro do Travesseiro'

Por isso não sobram as centenas de notas de rodapé, o extenso prefácio explicativo e os anexos com descrição de cargos, títulos, funções e atribuições da corte, flora, fauna, vestuário, arquitetura, calendário e cronologia de eventos históricos e literários.

A autora, dama da corte que servia à imperatriz Teishi, revela ao leitor um universo refinado, onde as pessoas levam uma vida de contemplação, compondo e recitando poemas, envolvidas com música e cultuando o belo.

A escrita é de uma mulher inteligente, perspicaz, às vezes irônica, que não se limita a observar e desvelar a vida da corte. Ela tem opiniões sobre tudo e as expressa.

Na obra há textos em que Shônagon manifesta sua predileção em relação a temas leves, como elementos da natureza ou peças do vestuário, e outros mais controversos, num dos quais, por exemplo, declara alegrar-se com o sofrimento de uma pessoa odiada.

Sem a atual preocupação com o politicamente correto, ela ainda revela desdém pelos pobres: "[...] nada há de mais detestável do que uma pessoa mal vestida que vem assistir aos eventos imperiais em uma carruagem miserável".

Da mesma forma, despreza os feios: "É extremamente desagradável ver uma mulher de pele escura, feia e com aplique no cabelo, dormindo com um homem de barba crescida, franzino [...]".

OBRA ÍMPAR

Por outro lado, ela admira os nobres e os belos e valoriza os funcionários de alta posição hierárquica, referindo-se a eles sempre pelo título.

Entre todos, a consorte imperatriz é a mais elogiada: "Estava maravilhosa trajando carmesim, sobre quimono com forro uchiki que dispensa qualquer descrição, e suas mangas pendiam sobre o negro e lustrado alaúde, que fazia destacar sua testa muito alva, enfim revelada em seu esplendor incomparável".

A concisão, a simplicidade e a objetividade do estilo lembram o haicai. Alguns dos textos da obra se resumem a duas ou três linhas.

"O Livro do Travesseiro" é uma obra ímpar, que nos remete a um universo longínquo, com senhores altivos usando túnicas elegantes e mulheres cultas com quimonos.

Ao mesmo tempo, repete atemporalidades: "Coisas que desagradam. Visita que se estende em conversas quando temos algo que urge".

Esse caráter atemporal somado à escrita sem amarras e à heterogeneidade dos textos tornam moderna a obra de Sei Shônagon.

OSCAR NAKASATO é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e autor de "Nihonjin", vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance.

O LIVRO DO TRAVESSEIRO
AUTOR Sei Shônagon
EDITORA 34
TRADUÇÃO Geny Wakisaka, Junko Ota, Madalena Hashimoto Cordaro, Lica Hashimoto e Luiza Nana Yoshida
QUANTO R$ 78 (616 págs.)
avaliação ótimo


Endereço da página:

Links no texto: