A fila que se forma no meio de uma das plataformas do Terminal Parque Dom Pedro, no Centro, causa estranhamento a quem passa ali, apressado, em mais um dia de rotina.
Homens e mulheres carregando malas antigas se preparam para uma viagem. Não uma com destino certo e tarifada, mas uma viagem em um ônibus empoeirado, recheado de lembranças narradas pelos atores da Trupe Sinhá Zózima.
O espetáculo, chamado "Dentro É Lugar Longe", é encenado no veículo em movimento, toda terça e quarta-feira, às 20h, com saída do terminal e encerramento na Estação Júlio Prestes. A peça é gratuita e os espectadores têm a opção de voltar ao Parque Dom Pedro no mesmo ônibus.
As histórias contadas na peça são baseadas em casos reais, colhidos durante um trabalho da trupe em uma chácara em Santa Isabel (61 km de São Paulo). Durante 24 horas ininterruptas, Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza recordaram momentos importantes de suas vidas. "Pegamos o que mais nos tocou, o que é mais potente", diz o diretor Anderson Maurício.
O material bruto passou pelas mãos do dramaturgo Rudinei Borges, que além de dar forma teatral ao texto, injetou poesia à peça.
O resultado é uma montagem não linear, em que a poesia é o filtro de toda a narrativa e o componente que costura a trama. Os personagens, que não necessariamente estabelecem relações entre si, lançam um olhar ingênuo e belo sobre a infância, os pais, e relembram as dores que a morte de entes queridos lhes trouxe. O espectador ora se flagra com um riso discreto, um sorriso largo ou uma ponta de melancolia.
Criar empatia a partir de histórias tão cotidianas talvez seja o grande charme de "Dentro É Lugar Longe", que se propõe a estabelecer diálogo com um público pouco íntimo do teatro -os trabalhadores que passam pelo Terminal Parque Dom Pedro. É por esse caminho que o texto evoca lembranças outras, do repertório particular de quem assiste à montagem. É aí que as emoções são despertadas.
A mecânica faz jus à filosofia do diálogo do filósofo Martin Buber (1878-1965), uma das linhas da pesquisa que tem norteado o trabalho da trupe em seus espetáculos populares encenados em ônibus --"Cordel do Amor Sem Fim" e "Valsa nº 6" foram as montagens anteriores.
Para Buber, a existência do homem emerge do diálogo. É por meio dele que o homem cria uma realidade comum e se confirma em sua natureza de criatura.
SÃO PAULO
O diálogo entre público e plateia também se estende ao diálogo entre o ônibus, seus ocupantes e suas histórias, com São Paulo. Não só o ônibus interfere na cidade, despertando olhares curiosos por onde passa, como a metrópole interfere na montagem, seja jogando a luz das ruas sobre as cenas, seja na forma de cenário, como no momento em que o veículo para na frente do Theatro Municipal enquanto uma personagem relembra sua história: "eu vim para ficar 30 dias em São Paulo e nunca mais voltei".
O pó que propositadamente recobre todo o lado externo do veículo cria um efeito de distanciamento com o tempo presente: é como se essa paisagem também estivesse manchada pelo tempo, uma narrativa viva do passado. E a cidade em movimento é metáfora da vida que se segue, em sucessivos fatos que depois se tornam memória.
A interação com a cidade também rende situações inusitadas. Como na cena em todos os espectadores, já fora do ônibus, param diante da Estação Júlio Prestes. Na noite de estreia, um morador de rua moveu seus braços, esticados, à esquerda, para dar passagem a uma atriz em cena. Um transeunte gostou do que viu se juntou ao grupo: "Teatro, que da hora!", disse.
Sem qualquer pudor, ainda avisou a trupe, com um grito: "sou mais um aqui!".
"Dentro É Lugar Longe" é uma peça que desperta o sentido da existência de cada um. E que dá vez a muita gente que talvez nunca tenha visto uma peça de teatro.
DENTRO É LUGAR LONGE
QUANDO ter. e qua., às 20h; até 12/6
ONDE Terminal Parque Dom Pedro II, centro; tel. (0/xx/11/96292-0447)
QUANTO grátis; ingressos disponíveis uma hora antes
CLASSIFICAÇÃO livre