Folha de S. Paulo


Artista chinês Cai Guo-Qiang usa pólvora para expressar a energia do Carnaval

Na arte contemporânea chinesa, Cai Guo-Qiang parece ir na contramão do artista mais famoso de seu país. Embora tenha se envolvido com a megalomania dos Jogos Olímpicos de Pequim, da mesma forma que Ai Weiwei ajudou a projetar o célebre estádio Ninho de Pássaro, Cai passa longe da polêmica e do histrionismo de seu conterrâneo.

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Artista que pendurou aviões e helicópteros mambembes, projetados por camponeses chineses, entre os prédios do centro paulistano, Cai não bate de frente com seu governo. Na mostra que chega a São Paulo depois de passar por Brasília, o chinês exibe sua coleção de objetos inusitados coletados nos rincões mais remotos da China, um manifesto a favor da genialidade espontânea desses artesões que passam ao largo da tecnologia.

De piroctécnico, só a pólvora que Cai usa para fazer alguns de seus desenhos, um deles inspirado pelo Carnaval brasileiro e agora pendurado no Prédio Histórico dos Correios, em São Paulo. Durante a montagem de sua mostra em Brasília, Cai falou à Folha.

Eduardo Knapp/Folhapress
O artista Cai Guo-Qiang entre robôs pintores
O artista Cai Guo-Qiang entre robôs pintores

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Folha - Por que você decidiu usar pólvora em seus desenhos, em especial o que realizou sobre o Carnaval brasileiro?
Cai Guo-Qiang - Eu tenho usado pólvora por mais de 20 anos. Aqui no Brasil, achei que a pólvora fosse o meio mais perfeito para expressar a energia selvagem do Carnaval. Mesmo que já tenha feito grandes desenhos de pólvora antes, a composição é mais calma e tranquila. Dessa vez, quis fazer uma composição mais selvagem, livre e energética. Nesse ensaio de Carnaval, usei pólvora demais, ao ponto em que algumas partes o papel até se queimou por inteiro. Tinha fogo por toda parte. Posso fazer obras únicas aqui, que captam a energia do Brasil.

Quando se apropria de invenções e objetos construídos por outras pessoas, sua intenção é questionar a autoria da obra de arte?
Quando comecei a colecionar esses objetos de inventores chineses, não sabia bem o que fazer com eles, mas em 2010 fui convidado pelo Museu de Arte Rockbund, em Xangai, para fazer a mostra inaugural deles. Acontece que isso foi ao mesmo tempo que a Exposição Universal de Xangai, o tipo de exposição em que costumam exibir grandes feitos tecnológicos e exaltar glórias nacionais.

Como eu havia trabalhado nas Olimpíadas de Pequim, sempre pensei que as pessoas viam a China como uma grande massa de pessoas em vez de indivíduos que têm desejos e esperanças. Achei que esses objetos oferecessem uma nova perspectiva, ainda mais nesse cenário de modernização acelerada na China.

Muitos dos camponeses das zonas rurais vieram viver nas metrópoles para trabalhar na indústria e na tecnologia. É por isso que a China se desenvolveu com tanta rapidez, mas mesmo assim esses camponeses são muitas vezes tratados como cidadãos de segunda classe, sem direito à saúde ou à educação. Queria mostrar que esses camponeses também são muito inteligentes e podem oferecer soluções criativas. Eu, sendo um artista, consigo avaliar o uso de material deles e como eles correm atrás de seus sonhos por meio dessas criações.

Tento contar a história desses inventores por meio dessas instalações usando a linguagem da arte, mas os inventores são os verdadeiros protagonistas aqui. Estou exaltando essa estética das coisas feitas à mão em plena era digital. Eu só conto a história.

Sua escolha dessas invenções muitas vezes depende de como foi seu primeiro contato com o trabalho. Como você organiza esses objetos no espaço expositivo?
Em cada lugar de exibição, a configuração é diferente. Em Xangai, muitas dessas obras foram expostas no espaço público, como um disco voador instalado no telhado do museu, além de frases projetadas na fachada do museu. Queria com essas frases espalhadas pela cidade contar o destino desses camponeses aos habitantes de Xangai. Em Brasília, com toda aquela natureza, quis colocar o porta-aviões sob o céu azul, enquanto que em São Paulo os discos voadores e aviões estarão nas ruas. É como um desfile na cidade.

Depois de trabalhar nas Olimpíadas, você acredita que mudou a escala de seu trabalho? Como é reger um grande espetáculo?
A vantagem de trabalhar nessas cerimônias de Estado é que você atinge bilhões de espectadores. Não seria possível mostrar uma obra de arte contemporânea a tanta gente ao mesmo tempo. Pensei naqueles fogos de artifício cobrindo o centro de Pequim pela primeira vez em 1993, como se fossem as pegadas de um gigante, mas não foi possível executar um projeto tão grandioso sem ter o apoio do Estado.

Mas, numa escala tão grande, você também é forçado a trabalhar com muita gente, pessoas do governo, cientistas, policiais, bombeiros. Quando um artista trabalha nessa escala, ele acaba se incorporando mais à sociedade. Nesse sentido, você acaba causando um grande impacto.

Você teve toda a liberdade que gostaria de ter ao trabalhar nesse projeto? Houve qualquer tipo de censura do governo?
Em todas as Olimpíadas no mundo, todo time criativo sempre teve restrições ao trabalho, sejam elas de ordem técnica ou orçamentária. Às vezes, é importante discutir todas as possibilidades dentro de uma sociedade democrática. No caso de Pequim, além de mostrar as conquistas dos 5.000 anos de história da civilização chinesa, tivemos de pensar em como mostrar o espírito dos indivíduos e suas vozes numa cerimônia tão grande, como ilustrar o senso de humor e os sonhos e desejos de um povo. Em Londres, acho que tiveram mais sucesso mostrando as excentricidades britânicas, enquanto na China me esforcei para mostrar o espírito da nação, sua poesia e filosofia. Estou curioso para ver o que farão no Rio.

Você orquestrou tudo isso dentro de um espaço que Ai Weiwei ajudou a desenhar. Como é sua relação com ele e o que acha de sua obra?
É difícil dizer como ele é como pessoa, mas alguns artistas gostam de usar arte para criar avanços sociais e democráticos. Minha arte tem mais a ver com promover minha própria liberdade e possibilidades de expressão. Quando trabalho em outras culturas, encontro novas liberdades.

O jornalista SILAS MARTÍ viajou a convite do Centro Cultural Banco do Brasil


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