Folha de S. Paulo


'Salões de Paris' reúne crônicas inéditas de Proust no Brasil

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O escritor Marcel Proust
O escritor Marcel Proust

Poucos foram os escritores que conseguiram penetrar no espírito decadente e tagarela de sua época como o francês Marcel Proust, em sua notável obra que é "Em Busca do Tempo Perdido", que começou a ser publicada em 1913. Seu trabalho de Penélope da reminiscência, para usar uma expressão de Walter Benjamin, fez com que ele se fechasse num "quarto escuro, sob uma luz artificial, no afã de não deixar escapar nenhum dos arabescos entrelaçados", como escreveu o filósofo.

Na rememoração desse passado, nos deparamos com um obra cuja síntese continua impressionando, principalmente por nela participarem um vasto conhecimento do mundo e dos mundanismos e sua capacidade de retirar desse meio parisiense decadente do século 19 o que Benjamin chamou de "as mais extraordinárias confidências". No entanto, antes de se lançar a tal empreitada, o jovem Proust também escreveu contos e colaborou com a imprensa francesa, principalmente no jornal "Le Figaro", onde estampava crônicas mundanas sobre os salões que frequentava e sobre outros assuntos de ocasião.

Neste belo "Salões de Paris", com cuidadosa tradução de Caroline Fretin de Freitas e Celina Olga de Souza, encontramos o Proust jornalista, descrevendo para o leitor a agitação frenética e um tanto neurastênica dessa alta sociedade e todo seu esnobismo. São 21 crônicas publicadas principalmente no "Le Figaro" e também em periódicos como "Le Mensuel", "Revue d'Art Dramatique" e "Revue Blanche", entre 1890 e 1913. Algumas delas saíram originalmente sob pseudônimo e todas elas estavam inéditas no Brasil.

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A organização do volume infelizmente não é cronológica e, sim, temática. Infelizmente, pois o mais interessante na leitura conjunta desses textos é perceber como Proust foi elaborando a sua matéria e a sua linguagem, indo da anotação mundana quase que direta, com uma fileira de nomes de condes e princesas, para um olhar mais irônico desse mesmo universo.
Do bajulador, como nota Guilherme Ignácio da Silva, na introdução ao volume, para o qual ninguém passa sem um adjetivo simpático, ao observador fino que, diante de uma notícia de jornal, do chamado "fait divers", passa a uma incrível reflexão sobre os mecanismos da memória e da imaginação.

Esse é o caso do famoso artigo "Sentimentos Filiais de um Parricida", publicado em fevereiro de 1907 (na edição brasileira, foi incluído um último parágrafo, com base na edição das obras completas de Proust pela coleção Pléiade, que havia sido suprimido pelos editores do "Figaro"). Nele, Proust começa com uma informação mundana —uma carta de condolências que enviara a Henri van Blarenberghe, quando o pai deste morrera− e reproduz a delicada carta que recebera como resposta.

Suas relações com Henri não eram profundas, ou melhor, como ele mesmo diz, eram "relações mundanas bem banais". No entanto, suficientes para que sua memória fosse ativada e ele se lembrasse do olhar do amigo e de "sua boca entreaberta após ter lançado um sutil gracejo". Com essa anotação frívola, ele chega aos olhos, ou melhor, como ele mesmo registra, à participação do olho "nessa exploração ativa do passado que se chama recordação".

Entramos no assunto proustiano por excelência, ou seja, a memória que desperta com seus "estranhos instantâneos". Observar alguém que se lembra de algo é ver como o próprio olho, esse "telescópio do invisível", se esforça nessa busca. Recordando um outro episódio, ele nos diz: "Eu era tomado por uma impressão de sobrenatural nesses momentos em que meu olhar encontrava o seu, que, com uma linha curta e misteriosa, em uma atividade de ressurreição, unia o presente ao passado".

A beleza dessa crônica não fica por aí. Seu amigo de jantares sociais tornara-se notícia policial: assassinara a mãe e se matara na sequência. Evocando o pobre infeliz do Édipo e também um desesperado Lear, Proust tece mais uma de sua série de reflexões sobre a existência. Se arejou o quarto do crime com um drama grego e citou as delicadas cartas de um filho amoroso, como ele mesmo diz, foi para escavar a alma humana, a nossa alma: "No fundo, envelhecemos, matamos todos os que nos amam pelas preocupações que lhes causamos, pela própria inquieta ternura que inspiramos e colocamos constantemente em alerta". Um tema que o absorverá em "Em Busca do Tempo Perdido".

A edição traz ainda outras belas crônicas sobre as igrejas de vilarejos, sobre a relação material com os livros e a leitura, sobre sua infância e tantos outros assuntos que o perseguiram durante toda a vida. Se cabe ainda algum comentário ao volume lançado pela editora Carambaia, vai para o projeto gráfico sofisticado. Mas nem sempre essa sofisticação encontra guarida no acabamento gráfico. Em pouco tempo, a capa preta de cartão, que vai amassando nas pontas com o uso, desgruda-se do miolo do livro. E o melhor a fazer é lançá-la num canto, pois o que interessa ao leitor é continuar mergulhado nessas "terras reconquistadas do esquecimento que se ressecam e se reconstroem".

AUTOR: Marcel Proust
ORGANIZAÇÃO: Graziella Beting
TRADUÇÃO: Caroline Fretin de Freitas e Celina Olga de Souza
EDITORA: Carambaia
QUANTO: R$ 75,90 (208 págs.)
AVALIAÇÃO: ótimo


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