Folha de S. Paulo


Criminosos neonazistas e outros enredos embalam livros de ficção

SHIROMA: MATADORA CIBORGUE
A capa não deixa dúvida: um livro de ficção científica. Para piorar: de um autor brasuca. Um autor insistente -afinal, Roberto de Sousa Causo vem publicando regularmente, aqui e lá fora, desde 1989.

Na cabeça de muito leitor, a insistência na ficção científica (assunto de gringo?) só pode significar uma coisa: dólares, centenas de milhares. Garantimos que não. O autor não enriqueceu, longe disso. Mas conquistou posição central no círculo mais externo de nossa literatura. Porque a ficção científica, saibam, sempre foi a nossa "literatura marginal".

Shiroma é uma pós-humana: uma garota geneticamente aperfeiçoada, com implantes biocibernéticos e inteligência incomum. É também uma das personagens femininas mais interessantes da contística atual, em tempos de igualdade de gênero e empoderamento da mulher. Ela protagoniza 11 contos de ação e reflexão, em que se entrelaçam perenes conflitos sociais e morais, tangidos por uma tecnologia "indistinguível de magia", como diria Arthur C. Clarke. (NELSON DE OLIVEIRA)

SHIROMA: MATADORA CIBORGUE
AUTOR Roberto de Sousa Causo
EDITORA Devir
QUANTO R$ 32 (248 págs.)

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EU QUERIA QUE VOCÊ SOUBESSE

Enredo que, como outros recentes em nossa literatura, se desenrola numa cidade do interior (gaúcho, neste caso) no auge da repressão pela ditadura. O tema são as culpas de um adolescente platonicamente fascinado pela esposa de um oficial do exército.

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À medida que a história anda, é difícil não pensar em "Missa do Galo", de Machado de Assis, em "Madame Bovary", de Gustave Flaubert, ou no filme alemão "A Vida dos Outros", de Florian von Donnersmarck. E, quando o desenlace se aproxima, vem a quase certeza de que o autor se inspirou em "Viagem aos Seios de Duília", de Aníbal Machado.

Mas não é nada disso. A história desemboca, sim, numa autoanálise quanto à superficialidade das relações afetivas consagradas pelo casamento. À parte um deslocado capítulo didático sobre contabilidade (!), este livro tem, em sua narrativa dos anos 1970, fôlego suficiente para inspirar um filme ou uma minissérie de TV. (GREGÓRIO BACIC)

EU QUERIA QUE VOCÊ SOUBESSE
AUTOR Marcos Kirst
EDITORA Artemeios
QUANTO R$ 29 (150 págs.)

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O PRINCÍPIO DE VER HISTÓRIAS EM TODO LUGAR

Todas as nossas relações são inautênticas e por isso não é mais possível procurar a verdade do mundo por meio do realismo lírico. É essa a tese defendida por Zadie Smith em ensaio sobre os possíveis rumos do romance contemporâneo. Parece ser nessa linha que se insere o primeiro romance de Leonardo Villa-Forte.

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No livro, um escritor sofrendo de dor de cotovelo resolve montar uma oficina de criação literária na própria casa, para espantar o tédio e esquecer a namorada. A premissa realista logo se transforma num jogo de duplos, onde as personagens não são instâncias individualizadas, mas anteparos e espelhos para o choque entre as pulsões de um narrador que, como escritor, tenta criar mundos por meio da linguagem.

O problema é que, quanto mais ele se esforça em reconstruir os sentidos, em si e nos textos dos alunos, só o que consegue é produzir os abismos que terminam por expulsá-lo do mundo "real". (ROBERTO TADDEI)

O PRINCÍPIO DE VER HISTÓRIAS EM TODO LUGAR
AUTOR Leonardo Villa-Forte
EDITORA Oito e Meio
Quanto R$ 39,90 (200 págs.)

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ABAIXO DO PARAÍSO

Cristiano era um menino que queria viver seu tempo e seu mundo, imaginando dialogar com John Lennon, Mayhem, Stephen King, Updike. Mas ele perde a mãe ainda pequeno e aos pouco as possibilidades de imaginar-se membro atuante desse mundo, e com isso ir construindo-se nele, são ceifadas pelas violências doméstica e social de Silvânia (GO), pela corrupção moral que simplifica seus sonhos, que rebaixa sua espécie -de homo sapiens a apenas homo goianus.

Estamos muito abaixo do paraíso. A malha de estupros, assassinato, espancamentos, roubos, suicídios e incesto retém a vida potencial. Adulto, o menino que se formou em direito vira o capataz de políticos corruptos, e passa a viver com a sensação de que "o que fazemos na vida ecoa no vazio".

Para Cristiano, Silvânia, Goiânia, Brasília, Smolensk, "é tudo a mesmíssima bosta", e a vida é uma história em que "todo mundo faz merda. Todo mundo faz coisas de que se arrepende () Todo mundo rouba alguma coisa, machuca alguém". Um livro triste, tão triste quanto o país que engendra narrativas como essa. (ROBERTO TADDEI)

ABAIXO DO PARAÍSO
AUTOR André de Leones
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 29,50 (256 págs.)

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INVEROSSÍMIL

Seguindo os passos da Livros do Mal, pequena casa que revelou nomes como Daniel Galera, Paulo Scott e Daniel Pellizzari, a Não Editora apresentou a rincões não gaudérios talentos como Carol Bensimon, Samir Machado de Machado, Reginaldo Pujol Filho, Antônio Xerxenesky e Rodrigo Rosp, que lança novo romance.

Inventivo, o livro cruza diálogos em linguagem de chat com uma narrativa na terceira pessoa para contar a história de Caio, um professor de escrita criativa (como o autor) que tenta o impossível: fazer sucesso na literatura, fazer sucesso com leitoras jovens e fazer sucesso em seu casamento.

Pobre Caio –nem Philip Roth conseguiu. Mas Rosp ao menos obtém uma divertida obra de meta-autoficção por não levar muito a sério um dos temas onipresentes da autoficção: o crepúsculo do macho frente ao empoderamento feminino -afinal, o patético Caio vive caindo nas armadilhas criadas pelo próprio narcisismo.

Todo estruturado em diálogos ágeis, ao fim tem-se a impressão de que se presenciou a uma sessão de masturbação assistida. O que também pode ser um outro nome para literatura. (RONALDO BRESSANE)

INVEROSSÍMIL
AUTOR Rodrigo Rosp
EDITOR Não Editora
QUANTO R$ 35 (128 págs.)

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UMA SELFIE COM LENIN

Narrado na segunda pessoa, este romance é uma longa carta de um brasileiro que viaja pela Europa à ex-mulher. "Eu fugi de você e você deu um jeito de vir": o sujeito não consegue curtir a viagem solo e tem de narrar sua crise de meia-idade -pelo menos é o que o leitor acredita no começo.

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O narrador é um jornalista, como o autor do romance, editor de "O Dia". Estamos novamente no terreno da autoficção (talvez este "Guia" precisasse um dia abrir a seção "Ficção Biográfica"). Narram-se manifestações contra a Copa e negociatas entre governo e publicitários; doleiros e policiais federais são personagens.

Narra-se, sobretudo, a derrocada moral de um jornalista que virou assessor de imprensa no mundo político, enriqueceu, envolveu-se com duas mulheres ao mesmo tempo, traiu companheiros e largou na estrada os ideais marxistas da juventude e os ideais românticos de partilhar a vida com alguém.

Promíscuo, cínico e vazio, ele simboliza nossa época desiludida -em que uma viagem existencial é só motivo pra clicar um autorretrato vulgar que ninguém vai ver. (RONALDO BRESSANE)

UMA SELFIE COM LENIN
AUTOR Fernando Molica
EDITORA Record
QUANTO R$ 30 (112 págs.)

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UM DIA TOPAREI COMIGO

Duas mulheres? Não. Se você prestar atenção à foto monocromática estampada na capa do segundo romance de Paula Fábrio, verá que são, lado a lado, uma mulher e um manequim. Esse clique enigmático da artista argentina Nicola Costantino resume muito bem, num piscar de olhos, a atmosfera de "Um Dia Toparei Comigo", sobre o poliamor.

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A narradora, Isabel, segue um mapa afetivo um traçado delineado pela subjetividade da memória ao escapar do Brasil para perambular com a namorada e uns amigos pela Europa. Esse mapa também é feito de alheias atmosferas literárias, reverberando situações de "Paris É uma Festa", de Hemingway, "O Lobo da Estepe", de Hesse, "O Livro dos Seres Imaginários", de Borges, entre outras.

Certos capítulos curtos do romance de Paula Fábrio lembram espelhos vistos num sonho. Há qualquer coisa de onírico na deambulação de Isabel, Virginia, Consuelo, Luis e Ramires. Uma atração especular, talvez uma garantia de que todos eles poderão um dia topar realmente consigo mesmos. (NELSON DE OLIVEIRA)

UM DIA TOPAREI COMIGO
AUTOR Paula Fábrio
EDITORA Foz
QUANTO R$ 37,90 (160 págs.)

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LÚCIFER E OUTROS SUBPRODUTOS DO MEDO

São dezenas de minicontos, microcontos e outros menores ainda (alguns com uma única linha) do autor mineiro Whisner Fraga, que já figurou em antologias do tipo. Tragicomédias sobre o medo que nos habita no dia a dia da vida urbana.

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Acompanha a leitura dos contos maiores a impressão de que o autor é um cortazariano de primeira a elaborar (e muito bem!) seu luciférico fraguismo. Mas eis que, de repente, o penúltimo deles desmerece o escritor argentino ("Já pensaram na vergonha dos fãs ao perceberem que Cortázar produziu tamanha merda?").

Trata-se, por certo, de mais um subproduto do medo -não do autor mas do personagem, membro da comissão julgadora de um concurso literário escolar.

Cortázar à parte, Fraga maneja com talento cortante as poucas palavras com que fala desse componente vital das pessoas, o medo, mesmo quando elas próprias jamais admitam estar vivendo sob seu manto. Belo trabalho. (GREGÓRIO BACIC)

LÚCIFER E OUTROS SUBPRODUTOS DO MEDO
AUTOR Whisner Fraga
EDITORA Penalux
QUANTO R$ 32 (92 págs.)

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ESTA TERRA SELVAGEM

O esforço solitário de um repórter no encalço de um bando de criminosos neonazistas nas ruas de São Paulo. Um rico exercício de estreia da autora, advogada, talvez por mais parecer um roteiro audiovisual.

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Dizia Bacon que alguns livros devem ser degustados, outros engolidos e alguns poucos mascados e digeridos. "Esta Terra Selvagem" tem de tudo um pouco.

A degustar, alguns personagens frágeis e superficialmente construídos, além da qualidade ligeiramente questionável de algumas amarrações do enredo.

A engolir, a metrópole cênica, que parece atravessar a história sem dar maior atenção às barbaridades sanguinolentas a granel a que assiste.

A mascar e digerir, a narrativa vigorosa e fluente, quase toda assentada em diálogos, desembocando nas fortes cenas de violência que dão vida ao thriller.

Uma história que se afunila aos poucos a seu personagem central, "do bem", culminando num final... quase feliz! (GREGÓRIO BACIC)

ESTA TERRA SELVAGEM
AUTOR Isabel Moustakas
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (118 págs.)


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