Folha de S. Paulo


Caixa com três volumes reúne o melhor de João do Rio

Dito "o pai da crônica", este gênero tão afeito à nossa proverbial preguiça e talento para o papo furado, João do Rio é agraciado com uma caixa reunindo seus principais escritos. A bela edição da Carambaia —pequena casa que vem tomando o lugar da finada Cosac Naify no capricho de suas publicações— junta não só as crônicas do jornalista carioca, como também seu teatro e seu folhetim. O recheio da linda caixinha art déco foi organizado por Graziella Beting, que se doutorou em Paris (bien sûr) justamente com uma tese sobre crônicas, folhetins e João do Rio, o mais afrancesado dos nossos escritores. Ou seja: o leitor está em ótimas mãos.

Divulgação
O escritor carioca João do Rio, fotografado em 1917
O escritor carioca João do Rio, fotografado em 1917

João do Rio foi o principal jornalista brasileiro em seu tempo. Gay, dândi, sofisticado, mas com um pé na cozinha (o politicamente correto ainda me deixa usar essa expressão?), era ao mesmo tempo descendente de negros recém-libertos e de brancos oligarcas, políticos influentes. Daí portanto seu livre trânsito no fervilhante Rio de Janeiro do anos 1900/10, das favelas aos salões, das ruas aos gabinetes, dos miseráveis aos burgueses. É do choque social que João do Rio extrai a tensão de suas narrativas, sempre híbridas.

Primeiro repórter moderno, João do Rio —pseudônimo de Paulo Barreto— gastava as solas dos sapatos atrás de boas histórias, ao contrário da maioria de seus pares, que ficavam mofando nas redações. Além de primeiro repórter, João do Rio foi também um precursor do new journalism, estilo que aplica ao jornalismo técnica literárias como diálogos, descrições extensas, mistura de opinião com apuração, detalhamento de perfis psicológicos etc. Foi também o mais jovem autor a entrar na Academia Brasileira de Letras, com apenas 29 anos.

Buscando na realidade direta os temas para sua ficção, João do Rio cometeu reportagens-conto —subgênero que nos anos 1960 foi praticado por monstros como Plínio Marcos e João Antônio e hoje está praticamente desaparecido da imprensa brasileira— e formulou a crônica conforme a conhecemos hoje. Um gênero impressionista, com muito humor, em que o narrador é personagem, com olhar para a realidade direta, atualidades e causos colhidos na calçada, e ao mesmo tempo tem a leveza típica do flâneur, o homem que vem e que passa —o autor, aliás, adorava usar a palavra flânerie, a andança baudelairiana, para praticar a nobre arte de perambular pelas ruas do Rio de Janeiro.

Gil/Reprodução
O escritor carioca João do Rio, retratado numa caricatura de Gil, de 1917
O escritor carioca João do Rio, retratado numa caricatura de Gil, de 1917

Sem João do Rio não haveria Rubem Braga ou Paulo Mendes Campos, ou, contemporaneamente, Fabrício Corsaletti e João Paulo Cuenca, notórios andarilhos da crônica. Mais da metade das crônicas aqui reunidas é inédita em livro; a organizadora fuçou tanto nos 25 livros publicados por João do Rio quanto em revistas e jornais da época.

No volume dedicado ao folhetim, há duas noveletas: "A Profissão de Jacques Pedreira" e "Memórias de João Cândido, o Marinheiro". O primeiro retrata um garotão da high society carioca, cujo pai, um advogado lobista com livre trânsito entre políticos, lhe manda arranjar um emprego. Até o próprio João do Rio era personagem, sob a pele de Godofredo de Alencar, figura que apareceria em outros textos. O folhetim era publicado nos rodapés da primeira página da "Gazeta de Notícias", dois dias por semana, e fez enorme sucesso. O folhetim praticamente não foi lido em livro, pois foi impresso com muitos erros tipográficos e João do Rio recolheu todos os exemplares e mandou-os à guilhotina ""sobrou um único exemplar, sobre o qual se fez esta edição.

O outro texto tem importância histórica, pois se trata de um longo perfil do líder da Revolta da Chibata, o "Almirante Negro". Um texto também controverso, em que João do Rio usou uma entrevista com João Cândido e seus diários, publicando o folhetim sem assinar. Somente em 2009 é que o texto voltou a ser estabelecido conforme se lê nesta edição.

Por fim, o teatro. "A Bela Madame Vargas" foi escrita em 1912 e estreou com grande estardalhaço, pois retratava um crime passional ocorrido na Tijuca em 1906: viajou por Europa e EUA e teve presidentes e ministros em sua plateia. "Eva "" A Propósito de uma Menina Original", outra comédia de costumes, aborda a história de uma filha de fazendeiros paulistas que convida amigos para passar uma temporada em sua propriedade; ali ocorrem casos de amor e crimes. Foi outro sucesso de crítica e público.

Outras peças inéditas, como "As Quatro Fases do Casamento" e "Que Pena Ser Só Ladrão!", nunca foram encenadas; como seus outros sucessos, aguardam o olhar de um diretor contemporâneo cuja curiosidade não tenha ficado na Broadway. Complementando a edição, há duas entrevistas com João do Rio especificamente sobre sua defesa ardorosa do teatro ""foi ele o primeiro presidente da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Diante de tal material, fica pequeno o epíteto "pai da crônica" para uma das figuras mais inventivas da literatura brasileira.

COLEÇÃO JOÃO DO RIO
QUANTO: R$ 149,90 (800 págs.)
AUTOR: João do Rio
ORGANIZAÇÃO: Graziella Beting
EDITORA: Carambaia


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