Folha de S. Paulo


Centenário de Orson Welles é comemorado com obras-primas

2015 foi o ano do centenário de Orson Welles e também aquele em que a Versátil demonstrou que, em tempos de crise, investir em cultura é um poderoso antídoto à falta de sentido.

Depois de o selo colocar no mercado diversas caixas com obras de cineastas inéditos ou maltratados, além de gêneros ainda vistos como subcultura, o lançamento de nove filmes de Welles às vésperas do Natal pode nos convencer de que Papai Noel existe.

As caixas "O Cinema de Orson Welles" e "Shakespeare por Welles" trazem versões restauradas das peças que faltam para montar o formidável quebra-cabeça desse ator-diretor que chegou a Hollywood tratado a pão-de-ló e saiu de lá tratado a pontapés.

Para o bem e para o mal, a permanência por mais de meio século de "Cidadão Kane", primeiro longa dirigido por Welles, no posto de maior filme de todos os tempos provocou distorções na recepção dos trabalhos que o cineasta conseguiu finalizar nas décadas seguintes.

"Soberba" e "É Tudo Verdade", ambos de 1942, estão na origem do mito de Welles como "artista genial aniquilado pelo sistema". Apesar de a versão remanescente de "Soberba" ser amputada e incompleta em relação à concepção original do realizador, é difícil não terminar de assistir ao filme assombrado pela riqueza formal e moral desse retrato da decadência de uma família burguesa, que é também painel nostálgico de um mundo regulado por lutas humanas que desaparece para dar lugar a outro movido por forças mecânicas.

Chico Albuquerque
Orson Welles durante filmagem de
Orson Welles durante filmagem de "É Tudo Verdade", em Fortaleza, em 1942

O projeto de "É Tudo Verdade" foi tão turbulento que resumi-lo em duas linhas seria desonesto. As filmagens que Welles fez no Brasil no pacote da política de boa vizinhança adotada pelo governo Roosevelt para impedir a ditadura de Vargas de ceder à tentação fascista foram reencontradas e deram origem a uma reconstrução primorosa. A dimensão eisensteiniana que Welles conseguiu dar ao registro de uma comunidade de pescadores no litoral do Ceará funde homem e natureza numa imagem que não tem nada de turística e que assombra não só pela beleza plástica.

"A Dama de Shanghai" (1948) foi o último esforço de Welles para se reintegrar ao regime hollywoodiano, mas o resultado é um filme até mais negro, pessimista e anticlássico que os anteriores. O duelo final numa sala de espelhos, com a imagem estilhaçada de Rita Hayworth, e a partida solitária do personagem interpretado por Welles projetam a vontade de inserir fissuras no mundo perfeito que Hollywood inventara e o rumo incerto que a carreira do diretor tomaria na Europa nas décadas seguintes.

"Grilhões do Passado" (1955) retoma o tema da identidade esfacelada de "Cidadão Kane". Nessa investigação existencialista, Welles aproveita a relativa independência financeira para experimentar os tempos da narrativa num filme labiríntico, além de manifestar seu gosto pela ambivalência entre verdade e mentira, heróis e canalhas.

Reprodução
DVD Shakespeare por Welles
DVD Shakespeare por Welles

Em "O Processo" (1962), Welles arranca Kafka da prisão kafkiana a que tantas leituras o condenaram. O humor que ele enfatiza ao adaptar o maior clássico do escritor tcheco renova a originalidade da visão de Kafka sobre o absurdo da condição humana, sempre sufocada pela vitimização de suas anônimas criaturas.

No longa-testamento "Verdades e Mentiras" (1973), Welles adota o formato do falso documentário para questionar o status do artista-gênio ao traçar o percurso de um falsificador com talento para fazer igual ou até melhor que os originais.

Em "Macbeth" (1948), "Othello" (1952) e "Falstaff" (1965), ele retoma seu idolatrado Shakespeare sem se curvar à ideia de "clássico". Os cortes, colagens e remontagens dos textos que fez desagradaram os puristas, que preferiam a fidelidade das versões filmadas por Laurence Olivier. O Shakespeare de Welles, no entanto, afirma o cinema como arte-irmã do teatro. Ambas se constroem a partir da palavra, mas estas só significam quando alguém as reinventa numa forma, numa "mise-en-scène" que as torna mais do que letras mortas.

O CINEMA DE ORSON WELLES
QUANTO: RS 69,90
DISTRIBUIÇÃO: VERSÁTIL
DIREÇÃO: ORSON WELLES

SHAKESPEARE POR WELLES
QUANTO: R$ 49,90
DISTRIBUIÇÃO: VERSÁTIL
DIREÇÃO: ORSON WELLES


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