Folha de S. Paulo


A arte de recontar histórias: escritor explica como é adaptar clássicos

Arquivo pessoal
Adaptador de clássicos para crianças, Fernando Nuno diz que sempre busca preservar a essência da história
Adaptador de clássicos para crianças, o escritor Fernando Nuno fala sobre Júlio Verne e ficção científica

Quem conta um conto aumenta um ponto? O escritor Fernando Nuno, mestre em adaptar clássicos da literatura para crianças, de pronto responde que sim.

Ele diz que sempre busca preservar a essência da história. "Como dizem em Portugal: procuro traduzir para os miúdos as ideias graúdas –de forma que as crianças aproveitem, gostem e procurem conhecer mais sobre a obra."

A convite da "Folhinha", ele assistiu ao espetáculo da Cia. Solas de Vento "Viagem ao Centro da Terra", história de Júlio Verne que ele recontou na coleção "Correndo Mundo", da editora DCL.

Como é ver nos palcos uma história já lida nos livros? "Ao ver a peça, sentimos que a história ganha um valor diferente, ao nos transmitir sensações para os olhos e os ouvidos. Ao ler o livro, a vivência das palavras silenciosas, das frases ecoando dentro da gente, nos trazem outro tipo de crescimento interior."

Na entrevista a seguir, ele fala sobre o que é adaptar uma história. Também conta quem foi esse escritor que inaugurou o gênero da ficção científica, aquelas histórias cheias de invencionices e que antecipam o futuro, e dá dicas de como começar a ler a obra de Verne.

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Folha - Como surgiu sua vontade de recontar clássicos para as crianças?
Fernando Nuno - Recontar uma história me traz a lembrança gostosa dos avós, dos pais, dos tios, das professoras dos primeiros anos de escola, que contavam histórias. Muitas eu nem sabia que eram o que se chama clássicos. Conforme ia crescendo, ia descobrindo livros que recontavam essas histórias, livros cada vez maiores.

Um dia passei a sentir a alegria interior incrível que dá ler essas mesmas histórias na versão original, completa, e senti que aquelas primeiras versões haviam me plantado a semente, servido de escada para chegar às versões mais difíceis. Hoje, quando reconto uma dessas histórias em livro, revivo grande parte daquele prazer de criança. Por sinal, foi pensando nos meus próprios filhos que comecei a recontar os clássicos.

O que é recontar uma história clássica, que já viajou muito por aí?
Agora lembro o ditado de que quem conta um conto aumenta um ponto. Mas tanto podemos aumentar vários pontos, não só um, como não mudar nada na história que estamos contando. Ou seja: há duas maneiras de recontar um clássico –ou uma história qualquer.

Quando conto um clássico em livro, procuro preservar a essência da obra: o meu livro busca trazer as cenas mais impressivas e, principalmente, as ideias mais importantes do clássico que estou contando.

E como é que fica quando as histórias dos livros migram para o teatro ou o cinema?
No teatro e no cinema, é mais difícil ficar "colado" ao que está escrito no livro. Geralmente é preciso criar mais cenas. Daí que o teatro e o cinema às vezes mudam até bastante a história que está no livro, criando muitas vezes uma obra quase toda nova.

A maioria das peças de um autor de teatro que é considerado o maior escritor de todos os tempos por muita gente, William Shakespeare, já haviam sido escritas mas ele, ao adaptá-las para o palco, criou novas cenas e personagens de primeira grandeza que não existiam nas obras originais. "Romeu e Julieta", por exemplo, já existia séculos antes, em francês, italiano e até em inglês, mas a versão definitiva, a que superou todas as outras e sobrevive até hoje, é a de Shakespeare.

A convite da "Folhinha" você assistiu à peça "Viagem ao Centro da Terra". Como especialista em Júlio Verne, o que achou da montagem?
Gostei muito de assistir a "Viagem ao Centro da Terra" no teatro. Houve mudanças em relação ao livro, é claro, para tornar a encenação mais atrativa, mas o essencial da história e dos personagens se manteve.

A cena em que Axel fica perdido nos túneis embaixo da terra, por exemplo, que deixa o leitor do livro em suspenso, ganhou outra dimensão. Também ficou muito boa a luta dos dinossauros.

Qual é a essência dessa história escrita há tanto tempo?
Nos dois casos, sinto que existem dois centros da Terra –ou que o centro da Terra está em dois lugares: aquele para o qual a força da gravidade nos puxa, mas é inatingível, e o outro centro da Terra e do universo, que está dentro de cada um de nós. E a melhor maneira de atingi-lo, cobrir as distâncias, fazer uma viagem e trazer tudo para bem perto de nós, é lendo um bom livro, assistindo a uma boa peça. A viagem ao centro da Terra é, no fundo, uma viagem ao centro de nós mesmos.

Por que até hoje as histórias de Júlio Verne são (re)contadas? Que legado esse escritor deixou?
Júlio Verne tinha uma criatividade que só ele! Mas também era muito estudioso. Quase sem ter viajado, escreveu livros de aventuras passados em todas as partes do mundo, graças às leituras que fazia. Dizem que o que ele contava a respeito de países longínquos os retratava melhor que os livros de outros escritores que tinham viajado para eles. Ele escreveu até um livro chamado "Jangada", que se passa na Amazônia mas é pouco conhecido no Brasil.

Além disso, foi o pioneiro da ficção científica e previu inventos e eventos que ainda não existiam na sua época, como o telefone, a televisão, o submarino de longo alcance, o foguete e a viagem espacial. No livro "Da Terra à Lua", ele imaginou que a primeira viagem à Lua partiria da Flórida, nos Estados Unidos; até o lugar de onde o foguete seria lançado ele pôde prever com mais de cem anos de antecedência ("Da Terra à Lua" foi publicado em 1865 e os primeiros homens a pisar na Lua foram levados por um foguete lançado em 1969 na Flórida).

Ele não se considerava um mago vidente, só estudava ciência a sério. Por isso conseguiu acertar em muitas coisas.

Como começar a ler Júlio Verne?
Para quem quer começar, recomendo "A Volta ao Mundo em Oitenta Dias". Outros livros bons para começar são "Viagem ao Centro da Terra", que até hoje é um passeio impossível de fazer, e "Vinte Mil Léguas Submarinas", uma viagem por baixo dos oceanos em uma época em que isso era apenas um sonho.

Em todas essas histórias (e em todas as de Júlio Verne), o mais marcante é a vontade do ser humano de se superar, romper limites, vencer desafios. Se você ainda não costuma ler muito, comece com uma adaptação - e não deixe de ver a peça. Se já gosta de ler livros grandes, vá direto para uma tradução da versão integral. E, quando possível, aprenda francês, que é uma língua muito bonita e deguste as obras de Verne no original.


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